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'Os Supridores' diverte pela originalidade de seu 'Marx para manos'

No vaivém entre eventos e comentários irônicos, o estreante José Falero revela um viés machadiano

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Alcir Pécora

Professor titular de teoria literária da Unicamp

Os Supridores

  • Preço R$ 59,90 (304 págs.); R$ 36 (ebook)
  • Autoria José Falero
  • Editora Todavia

“Os Supridores”, romance de estreia do escritor gaúcho José Falero, tem a forma aproximada da crônica picaresca, na qual se narram as aventuras tragicômicas de um herói jovem e miserável, cuja sobrevivência depende da astúcia aplicada à margem da lei.

Os adversários e obstáculos que enfrenta são muito maiores do que ele, pois estão fundados sobre uma sociedade estamental, determinada pelo nascimento e avessa à mobilidade.

Pedro, o protagonista, está ciente da absoluta relevância dos “miolos”, tanto para o serviço imediato do estômago, como para ter alguma chance contra o destino selado dos moradores das periferias. Assim, não apenas planeja os seus golpes, como pensa um bocado sobre a vida e a luta de classes que a sustenta.

Ademais, Pedro expõe com gosto a seus companheiros o que aprendeu em suas leituras, efetuadas nos longos trajetos de ida e volta de ônibus entre o centro de Porto Alegre e o seu barraco, no extremo leste da cidade.

josé falero
O escritor José Falero - Divulgação

As lições particulares que dá ao parceiro Marques formam o que há de mais divertido no livro: uma espécie de “Marx para manos”, cujas conclusões conhecidas são valorizadas pela forma original com que as expõe, rica em analogias e metáforas extraídas da experiência cotidiana, e especialmente do lugar ínfimo do seu emprego, a saber, o dos “supridores” de supermercado.

Em São Paulo, o termo usado é “repositores”, que refere a mesma função de abastecer gôndolas, descarregar mercadorias, compor estoques, etiquetar etc., ou seja, operações associadas ao fluxo de vendas da empresa.

O resultado dessa translação conceitual acresce graça à elucidação das relações estreitas entre propriedade privada e nascimento; empreendedorismo e roubo legalizado; ou, ao contrário, das distâncias abertas entre lei, justiça e bem comum.

Daí sua conclusão do divórcio radical entre as classes, assim como entre trabalho, merecimento e ganho, cujo corolário é a ideia de que, na vida de pobre, ou se é escravo ou bandido.

Como a humildade resignada da mãe o deprime, ser escravo não é opção, e Pedro escolhe suprir a cidade de maconha, vendendo-a, primeiro, na sua vila e na dos amigos, e depois, dentro do próprio supermercado, a alunos de colégios particulares da região.

O divórcio das classes materializa-se linguisticamente na construção de uma fala de periferia —que compreende os diálogos entre Pedro, os amigos, os traficantes etc.—, contraposta à norma culta do narrador.

Na invenção escrita do jargão oral, além do léxico colorido, das flexões verbais econômicas e do calão abundante, são especialmente agudas as falas proverbiais de Pedro, que parecem capturar vivas as frases expelidas das ruas, recurso em que Plínio Marcos é o grande mestre brasileiro.

A eloquência do herói segue pari passu a ação, desde o crescimento das vendas até o clímax empolgante do acerto de contas com a facção barra-pesada que não admite a concorrência. Nesse vaivém entre evento e comentário irônico a disputar a primazia da narração, revela-se o viés machadiano de Falero.

A personalização de abstrações —em que o sujeito da ação passa a ser “o aguilhão do autodesprezo”, ou uma “pulga” que salta de uma orelha a outra— dá também exemplo disso.

O toque machadiano final está numa curiosa “teoria da sopa”, na qual o próprio romance vem para o primeiro plano. A literatura se revela então como peça constitutiva da história, e não apenas como representação realista dela.

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