'Rainha de Copas' demonstra sutilezas da violência sexual, dizem debatedoras

Longa dinamarquês foi debatido no Ciclo de Cinema e Psicanálise nesta terça-feira (17)

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São Paulo

A violência sexual contra crianças e adolescentes é uma realidade mundial e uma das maiores perversidades desse trauma está no descrédito das denúncias das vítimas, que ainda estão se desenvolvendo e passam a questionar o testemunho de seus próprios sentidos.

Essa foi uma das conclusões das debatedoras do Ciclo de Cinema e Psicanálise nesta terça-feira (17), que discutiram o filme dinamarquês “Rainha de Copas”, de May el-Toukhy. O evento quinzenal é realizado a distância pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, com apoio da Folha e do MIS, o Museu da Imagem e do Som.

"A nossa sociedade não só abusa sexualmente, ela castiga e culpabiliza as crianças de situações nas quais jamais poderiam ser culpadas", disse a psicanalista Luciana Saddi, que fez a mediação do debate.

Na trama, Anne (Trine Dyrholm) é uma advogada especializada na defesa de crianças e jovens, vítimas de abusos. A protagonista tem um alto padrão de vida, um casamento estável e cria suas duas filhas gêmeas com carinho. A chegada de Gustav (Gustav Lindh), seu enteado adolescente, desperta nela uma atração sexual, com alto potencial de destruição.

"Abusadores têm um perfil diferente dos criminosos comuns porque não são marginais, mas pessoas inseridas e aceitas socialmente. O descrédito da vítima diz respeito ao fato dos abusadores serem pessoas respeitadas, como a protagonista do filme”, afirmou Luciana Temer, diretora presidente do Instituto Liberta, organização que combate a exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil.

Para a psicanalista Leda Barone, o filme pode ser interpretado com base em algumas ideias do psicanalista Sándor Ferenczi (1873-1933), discípulo de Sigmund Freud (1856-1939). Segundo ele, os adultos são propensos a infringir punições e ameaças graves que abalam e perturbam crianças totalmente inocentes.

Barone explica que, na visão de Ferenczi, o trauma acontece em três tempos. O primeiro seria o estabelecimento da confiança que a criança tem no adulto, algo que acontece naturalmente, pela relação de dependência. O segundo é o tempo do acontecimento traumático que pode ser abuso, maus tratos e chantagem emocional. Por fim, o terceiro instaura a situação traumática, quando a criança encontra o desmentido e uma frieza do agressor negando o acontecimento.

"O trauma tem efeito devastador no psiquismo do sujeito. A criança reage pela paralisia de sua espontaneidade e do pensamento”, afirma Barone. No caso de Gustav, quando o que ele diz é desmentido por Anne, o adolescente entra em um processo de autodestruição. "A negação feita sob a palavra dele já o matou como sujeito."

O grande choque de “Rainha de Copas”, na visão de Temer, vem do fato do abuso ser praticado por uma mulher (na grande maioria das vezes, é um homem), que estava muito consciente da ilegalidade da situação (ela é advogada dessa área) e a vítima ser um adolescente, de quem a sociedade espera a masculinidade exacerbada.

"No Brasil, relativizamos profundamente a violência sexual. Ela não é só o estupro com a arma na cabeça. É muito mais sutil, por exemplo, na sedução de uma criança por um adulto", diz Temer.

O público, que participou do evento pelo chat da transmissão, indagou o motivo de o abuso sexual contra meninos ser pouco citado e se isso tinha alguma relação com o estigma da masculinidade.

"Essa masculinidade destrói o menino em sua essência e integralidade. Ficamos todos vítimas desse comportamento que nos obriga a viver em uma sociedade pouco empática, agressiva, violenta", apontou Temer.

As psicanalistas comentaram sobre como deve ser a escuta de uma vítima de abuso em sessões de análise. Para Saddi, é preciso tirar a culpa da vítima da agressão para que haja libertação e empoderamento. "Essa culpa impede a pessoa de ter uma vida minimamente razoável. Faz o sujeito buscar punição e repetir situações de abuso ao longo da vida."

Para Barone, o papel do analista é o de perceber a gravidade dos relatos do paciente e tomar cuidado para não menosprezar algo que tem um grande valor traumático para o indivíduo.

Para Temer, é necessário entender o dano social e pessoal do abuso sexual e “não fechar os olhos para essa violência que não é ficcional”.

O filme está disponível gratuitamente na plataforma Ponte Nórdica no Ar que, a partir de parceria com o Instituto Cultural da Dinamarca no Brasil, exibe produções audiovisuais nórdicas. ​

A próxima edição do Ciclo de Cinema e Psicanálise debaterá o filme “O Oficial e o Espião”, de Roman Polanski. O evento acontece em 1º de dezembro, às 20h, e será transmitido no canal do MIS no YouTube.

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