Relações homossexuais já foram, um dia, só sugeridas através de relações heterossexuais; foram, um dia, matéria de filmes underground. Chegaram, por fim, à fase das ações afirmativas, ao pior momento, o das ações afirmativas –“Me Chame pelo Seu Nome”, “Moonlight – Sob a Luz do Luar”.
“Verão de 85” responde, de certa forma, a essa última tendência, já que o namoro e em seguida a paixão entre Alex, papel de Félix Lefebvre, e David, papel de Benjamin Voisin, muito raramente resvala para a pieguice habitual. É uma paixão. Como tal, se Alex fosse uma garota em vez de um rapaz, por exemplo, pouca coisa mudaria no essencial.
Ou seja, François Ozon pode não ser o maior cineasta do mundo, mas está longe de ser bobo. Digamos, aliás, que de seus filmes podemos esperar qualquer coisa –sua carreira às vezes parece uma montanha-russa. Ele se dá melhor trabalhando personagens como David, capaz de transmitir certo mistério, um não dito, a tudo que o cerca.
Talvez seja por isso que “Verão de 85” lembra, em certos momentos, o “Pacto Sinistro” de Hitchcock. A sombra da perversidade está lá —ainda que não se manifeste a não ser sutilmente, e isso se deve muito ao ator, Benjamin Voisin, que em certos momentos lembra o Jean-Paul Belmondo dos bons dias.
É por tratar de uma paixão homossexual que o filme de Ozon escapa —e não em poucos momentos— de ser uma “sessão da tarde”. O que quero dizer com isso é que, ao contrário dos filmes de “ação afirmativa”, Ozon não reivindica para seus amantes a “normalidade”. Ele sabe que não existe normal. Existem apenas normas que tornam certos atos normais ou não.
Essa virtude no trato da homossexualidade e da paixão pode desembocar no belo momento em que David recita alguns versos de Verlaine –a secura do amor de Verlaine por Rimbaud é extraordinária– como pode descambar para uns momentos românticos francamente tolos. É François Ozon, afinal.
Se evolui para o melodrama, “Verão de 85” tem o mérito de se propor, inicialmente, como um filme de mistério policial –o suspense envolvendo o silêncio de Alex a propósito de um crime que teria cometido– e se desviar do que parece óbvio como matéria ficcional. Narrar o filme com flashback é uma escolha que funciona bem e permite uma narrativa em que a clareza não encobre o mistério.
Se não reivindica a normalidade das relações entre gays, “Verão de 85” faz talvez melhor, ao reivindicar, sim, a naturalidade e a insânia que envolve esse tipo de afeto, como no mais de qualquer tipo de afeto. Essa naturalidade aqui se manifesta quase tão expressivamente quanto a de Andréa, a lésbica resolvida e nunca prosélita da bela série “Dix pour Cent”, disponível na Netflix.
É bem mais do que nada.
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