São Paulo Fashion Week tem coleções com tom político mais incisivo e estridente

Grifes exploram desde a desconstrução da bandeira nacional até silenciamento imposto pela ditadura militar

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São Paulo

Num ano em que a cultura amargou cortes de investimentos e a liberdade de expressão sofreu ataques de uma minoria que, apoiada pelo poder, parece a querer ver com boca e mãos costuradas, a moda agora tateia formas de, por meio das linhas, descosturar a opressão.

Parte das marcas que desfilaram no terceiro dia de desfiles da São Paulo Fashion Week e outras que ainda devem apresentar seus filmes até o domingo aumentam o volume político das coleções.

Na LED, do estilista Célio Dias, o azul profundo da bandeira brasileira tingiu um vestido curto feito com técnica de crochê. A marca ainda explora a técnica do macramê em peças que falam ao seu cliente desprendido de convenções sobre o que seria roupa de homem ou de mulher. Tanguinhas e roupa de rede podem vestir e expor a pele de todos os gêneros e identidades.

Mais além ainda foi a Misci, de Airon Martin, que estreou na semana de moda se apropriando da bandeira completa, mas também de suas linhas e cores amarela e verde, aqui apagadas, como se estivessem sob um véu de fumaça.

Segundo ele, a bandeira hoje "está vinculada a um discurso extremista", que prega a perda de liberdades individuais, não representa o país e nada tem a ver com a moda.

No litoral do Rio de Janeiro, numa área que vem sendo engolida pelo mar, sua modelo de traços indígenas tais quais os dos povos escorraçados pelo fogo alastrado em regiões não muito distantes de Sinop, em Mato Grosso, onde nasceu Martin, usa óculos com lentes das cores da bandeira.

Algo minimalista em suas formas, as roupas são soltas, não carregam firulas e mostram um trabalho minucioso de modelagem que, em alguma medida, conseguem abraçar qualquer biotipo.

Essa mesma ideia de recomposição da costura seria levada aos limites por João Pimenta, que encerrou o dia. Inspirado pela ideia de asfixia, cuja imagem tem a ver com a Covid-19, ele criou espécies de armaduras por meio das roupas.

Não é possível identificar a pele, o tamanho do corpo ou o gênero das pessoas que desfilaram uma vasta seleção de xadrezes, calças largas, saias e bordados. Na visão de Pimenta, elas servem para todos.

As cabeças foram cobertas com balaclavas, nas quais foram aplicados adornos brutos, a exemplo de grandes espinhos. Atrás das jaquetas pesadas, a cruz invertida que identifica a marca lembrou a intolerância religiosa.

"Não estou feliz com a zona de conforto em que a moda se sentou, de não olhar o que acontece à sua volta", disse.

A zona de conforto a que Pimenta se refere lembra o estado de silêncio da indústria nos anos 1960, quando a estilista mineira Zuzu Angel foi a única a se levantar contra a ditadura militar e foi morta, em 1976, num atentado.

Foi dela que seu conterrâneo e colega de profissão Ronaldo Fraga pescou as referências e o tema que encerra o último dia desta São Paulo Fashion Week. Ele explorou há 20 anos a obra da primeira grande estilista mulher do país e única "heroína na pátria" no livro de heróis nacionais.

Agora, décadas após a coleção "Quem Matou Zuzu Angel" ter se tornado um marco da moda brasileira, ele volta ao tema porque "é necessário".

Assim como ela fez, ele homenageará a cultura de moda nacional com rendas, neste caso produzidas em parceria com uma comunidade de Monteiro, no Cariri paraibano.

Enquanto Angel aplicou sóis quadrados, soldadinhos e anjos para denunciar, num desfile-protesto nos Estados Unidos, os horrores da repressão, Fraga fez frutas e folhas para dizer que o Brasil tem parte da população que não valoriza.

"O país parece viver de ciclos, quando achamos que tudo está superado e viramos a página, retrocedemos novamente", disse Fraga. "Escolhi Zuzu porque ela é verbo, está em várias mulheres mortas por expor seu pensamento, está no genocídio indígena, na queima da Amazôna. Ela é nossa história", afirmou.

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