Descrição de chapéu mostra de cinema

Tsai Ming-liang radicaliza seu cinema do olhar e sem histórias em 'Dias'

Cineasta malaio-taiwanês diz que quer se afastar da narração e que o público deve construir o filme pelo que vê

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São Paulo

Um homem numa casa com um vasto jardim e um tanque com peixes relaxa numa banheira e faz alongamentos para o pescoço próximo a uma árvore. Outro homem, numa casa pequena, lava verduras e pedaços de peixe no banheiro e depois os cozinha num fogão improvisado numa lata com carvão.

Assim nos são apresentados os dois personagens do novo filme de Tsai Ming-liang, “Dias”, exibido online na plataforma da Mostra de São Paulo deste ano. Se é que podemos chamá-los personagens.

Tsai já há algum tempo se distanciou da ideia de contar uma história em seus filmes. É o que aqueles que acompanham seu trabalho desde os anos 1990 vêm percebendo, e é o ele diz em uma conversa com a Folha por vídeo direto de Taiwan intermediada por um intérprete de mandarim.

homem sentado em poltrona olhando pela janela
O ator Lee Kang-sheng em cena do filme "Dias", de Tsai Ming-liang - Divulgação

Segundo ele, o cinema é muito baseado em diálogos e numa vontade de contar uma história, mas seus filmes mais recentes estão mais interessados no visual. Daí a sensação de que suas obras se aproximam da videoarte.

Tsai diz que seus filmes podem ser exibidos em galerias de arte, o que acontece por vezes —assim como o faz o cineasta e videoartista tailandês Apichatpong Weerasethakul— mas que prefere que sejam vistos no cinema. Ele faz uma comparação para explicar a diferença: ver filmes em museus e galerias é “como olhar flores montado num cavalo”.

Visitar exposições e ver as obras simplesmente passando diante delas, caminhando, detendo-se, por vezes, de pé ou então sentado desconfortavelmente, não é, portanto, a fruição esperada por ele de suas obras. “Meus filmes exigem um certo grau de concentração”, diz.

Porém, após ser exibido em festivais pelo mundo, "Dias" será visto por muitos, assim como pelos espectadores brasileiros da Mostra, em televisões, laptops e até mesmo celulares, por conta da pandemia e do isolamento social necessário neste momento.

Tsai diz não ser esta a situação ideal para seu filme, composto de algumas poucas sequências nas quais a câmera pouco ou nada se mexe para acompanhar gestos cotidianos —ou nem tanto.

O homem que vive no campo viaja para um tratamento para dores na coluna, imaginamos, já que é tratado com massagens, pequenos choques e gha-sha, técnica da medicina tradicional chinesa que consiste em raspar a pele com um objeto de borda lisa até que se formem manchas. Ali, hospedado num quarto de hotel, se dá o encontro com o outro personagem que nos foi apresentado de início. Mais jovem, o homem começa com massagens no outro, para então evoluir para uma relação sexual.

“Cada cena do filme tem vários pontos de foco diferentes, é preciso tempo para apreciar e identificar esses pontos”, diz Tsai sobre o que perdemos a não ver suas sequências, ou quadros, construídas como pinturas, na tela grande do cinema.

O filme tem pouquíssimas falas, como a do homem com o médico e uma breve conversa, em inglês, entre os personagens centrais. Porém, não há legendas. Um aviso exibido no começo do filme diz que a ausência é intencional.

Tsai diz que já queria que filmes anteriores fossem assim, mas que não pôde convencer a produtora. Desta vez, como ele mesmo produziu “Dias”, conseguiu emplacar sua vontade. “Queria que a construção pelo público do filme passasse menos pelo ouvido e mais pelo que é visto; uma experiência do público que não passasse pelas palavras”, diz.

O homem que enfrenta problemas na coluna é vivido por Lee Kang-sheng, ator presente em todos os filmes de Tsai. O cineasta conta que trabalham juntos há 30 anos e que tem interesse em filmar as mudanças pelas quais o corpo de Lee passa ao longo do tempo. Em vários de seus filmes vemos, de fato, Lee sem camisa, ou todo nu, descansando em cadeiras, poltronas, banheiras, assim como caminhando.

Curiosamente, Lee já havia aparecido em outros filmes de Tsai fazendo tratamentos na coluna. Tsai conta que, nos últimos 20 anos, Lee teve dois episódios de problemas no pescoço, para o quais tratamentos foram necessários, e que Tsai sempre acompanhava Lee aos médicos.

O cineasta malaio-taiwanês diz ainda que filma quem ele gosta de olhar e que “não precisa de atores famosos para conduzir plateias aos cinemas”. Tsai reconhece que não leva massas a seus filmes e diz nem ser essa a sua intenção. “Tenho um público cativo que me acompanha nos mais diversos lugares do mundo, é um nicho”, diz ele, que em 1994 ganhou o Leão de Ouro de Veneza por "Viva o Amor".

Em 2014, Tsai vestiu Lee de monge e o colocou para andar vagarosamente em Marselha sob o olhar de Denis Lavant, de “Holy Motors”, no filme “Jornada ao Oeste”. Ali, não há palavras, não há diálogos, a não ser no final, em que aparecem os dizeres “Todas as existências estão condicionadas ao olhar”.

O cineasta diz que se inspirou num trecho do Sutra de Diamante, coletânea de textos budistas, segundo o qual todos os fenômenos são “como sonhos, ilusões, bolhas e sombras, como o orvalho e o relâmpago” e devem ser contemplados. Ele diz que gosta de explorar essa ideia segundo a qual a realidade é um sonho. “Meus filmes são como um sonho, quando filmo é como se estivesse filmando um sonho.”

Dias

  • Quando até quinta (5)
  • Onde Na plataforma mostraplay.mostra.org/
  • Elenco Lee Kang-Sheng, Anong Houngheuangsy
  • Direção Tsai Ming-liang
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