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Beethoven e ousadia marcam música clássica na era da pandemia

Orquestra de Santo André é destaque ao escutar as dores e rupturas do ano, sem forçá-lo a ser o que não podia ser

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São Paulo

Finalmente, no último dia 17, Beethoven fez 250 anos. Nunca um aniversário durou tanto: começou há um ano, e desde então não saiu mais da pauta das orquestras, grupos de câmara e pianistas.

O mundo da música clássica adora efemérides, e não apenas os nascimentos, mas igualmente as datas de morte dos compositores são pretextos para homenagens. Assim, em 2021, as principais orquestras brasileiras irão tematizar os 50 anos da morte de Stravinski, o centenário de morte de Saint-Saëns e até mesmo os 125 anos da morte de Carlos Gomes.

Não há propriamente nada errado nisso, a não ser o fato de essas marcas históricas terem sido totalmente obnubiladas pelas trágicas perdas de 2020. Perdas de vidas pela Covid-19 —como a da regente Naomi Munakata, atuante ao longo dos últimos 20 anos como líder de organismos como o Coro da Osesp e o Coral Paulistano.

Se buscamos fazer um balanço dos projetos —de música ao vivo ou de transmissão pela internet—, há de se destacar aqueles que souberam escutar as dores e rupturas do momento, sem querer forçá-lo a ser o que não podia mais ser.

Nesse contexto, sobressaem-se três ações da OSSA (Orquestra Sinfônica de Santo André), grupo dirigido pelo irrequieto maestro Abel Rocha. A primeira, “Micro Estreias da Quarentena”, consistiu na encomenda de oito composições com duração máxima de quatro minutos cada uma, envolvendo apenas entre quatro a seis músicos, escritas de forma que prevesse a gravação por celular.

Transmitidas no dia 17 de maio —quando qualquer encontro musical estava proibido—, e desde então disponíveis no canal da orquestra, elas inovam pelo formato, e dão ao projeto uma identidade artística que aceita e ultrapassa as limitações impostas pela pandemia.

Com graus variados de experimentalismos técnicos e estilísticos, as obras guardam estranhamentos (como “Teledescante n.1”, de Maurício De Bonis), lirismos deslocados (“Quarteto para um Tempo Sem Fim”, de João Guilherme Ripper) e relações ambíguas entre solo e "tutti" (“Feras Engaioladas”, de Leonardo Martinelli).

Tudo o que Há n.2”, para viola, trompete, corne inglês, fagote, trombone e clarone, enviada de Berlim pelo paranaense Chico Mello, inspira-se em versos de Fernando Pessoa para —a partir de uma escala de timbres que contorna uma única nota— montar e desmontar algo que tangencia ser um samba-choro.

Em agosto a OSSA lançou a “Trilogia Trancafiada”, vídeos em que a artista visual Luisa Almeida superpõe performances do acervo da orquestra a cenas dos músicos em casa com seus instrumentos silenciados (1º episódio: "Ansiedade"), ao cotidiano não musical da vida em quarentena (2º episódio: "Adaptação"), e a um possível resgate da relação com a natureza e o mundo exterior a partir de janelas e suas grades (3º episódios: "Acolhimento").

Enfim, com “Micro-Ópera: O Guarani”, Abel Rocha e a Sinfônica de Santo André talvez tenham feito —com poucos recursos, e em menos de oito minutos— mais pelo gênero do que a soma dos teatros líricos das grandes cidades brasileiras no ano.

Entre as iniciativas mais tradicionais, a Filarmônica de Minas Gerais saiu na frente pela qualidade das transmissões dos concertos ao vivo, e foi louvável o esforço da Sala Cecília Meireles para manter uma programação de qualidade tendo ao redor de si a (já há alguns anos) caótica cena clássica do Rio de Janeiro.

Em outubro, quando do primeiro concerto com público na Sala São Paulo, a Osesp fez uma escolha precisa: abriu o programa com uma emocionante performance de “Für Lennart in Memoriam”, do compositor estoniano Arvo Pärt, obra instrumental inspirada em um coro sacro, com a orquestra introjetando o texto eslavo; como se sabe, a prática do canto coletivo está limitada pelos protocolos de saúde.

Os sentidos das obras dos artistas fortes se desdobram através dos tempos, e o papel de Beethoven como fundador da modernidade musical não está em cogitação. Mas, de fato, não há o que festejar; e o mínimo que se pode dizer é que o compositor alemão não será mais escutado da mesma forma após 2020.

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