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Caetano e Preciado falam em derrubar o teatro da masculinidade na Flip

Em mesa de alto nível, cantor e filósofo relacionaram violência da ditadura a imposição de normas sexuais

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São Paulo

Paul B. Preciado se define como "um dissidente do sistema sexo-gênero". Caetano Veloso, definido como um agente desvirilizante pelos militares, acaba de lançar um livro sobre sua prisão pela ditadura que resultou do golpe de 1964.

Como concluiu a interação entre os dois na Flip, as duas dissidências, política e sexual, têm uma ligação intrínseca.

A mesa com maior audiência até agora da festa virtual —com mais de 3.000 espectadores acompanhando em simultâneo— fluiu como uma conversa entre dois intelectuais de alto nível político e filosófico, uma janela para um diálogo de patamar equiparável aos melhores momentos que uma Flip pode proporcionar.

caetano e preciado em computador
O cantor brasileiro Caetano Veloso na mesa com o filósofo Paul B. Preciado em mesa na Flip, na noite deste sábado - Marlene Bergamo/Folhapress

O filósofo espanhol afirmou que o monopólio da violência "é dado a um conjunto de corpos masculinos e brancos reconhecidos como soberanos, enquanto os outros são pensados como subalternos". "A cultura fascista, patriarcal e colonial, define que a masculinidade soberana tem o uso legitimo da violência."

Essa brutalidade foi um fator determinante na prisão de Caetano, um cantor "meio maricas", em suas palavras, que se apaixonou por um homem e uma mulher ainda na adolescência —e nunca gostou de se definir como hétero, homo nem bissexual.

"O espaço muito masculino da prisão militar causou um apagão no meu Narciso, inclusive na minha atração sexual e sentimental por homens", afirmou o cantor, que narrou em livro e documentário sua experiência solitária no cárcere, que o fez sentir como se sua "vida não existisse". "Era como todo o resto tivesse sido um sonho, uma imaginação minha. Foi um apagamento do meu reconhecimento de mim mesmo."

"Eu fiquei com uma rejeição sexual em relação a homens, que não tinha antes. O modelo de masculinidade que me foi ensinado desde a infância nunca foi aceito por mim como indiscutível. Ao contrário, foi algo com que eu tive uma relação de mais do que desconfiança, de problematização, que nunca morreu."

Ao ler "Narciso em Férias", Preciado disse ter notado que a maneira de escrever de Caetano "não era muito masculina".

"Há um modo de se aproximar do seu corpo, de falar da perda de memória, de desejo sexual, que me pareceu maravilhoso. Porque algo que caracteriza a masculinidade na escrita é nunca pôr em questão o seu próprio corpo e sua capacidade sexual. Ali há um corpo em ruptura."

Na conversa, Caetano comentou que, apesar de se orgulhar de sua memória prodigiosa, nenhuma literatura "pode deixar de ser ficção". "A memória tem uma capacidade seletiva curiosa, e a escrita vai levando a outras coisas. Não pode deixar de haver uma construção de personagem."

Preciado, autor da recente coletânea "Um Apartamento em Urano", fez coro à ideia, afirmando que toda filosofia também é uma ficção que trabalha com metáforas. Mas foi além na análise.

"Para um corpo ser reconhecido hoje como humano, tem que passar por um protocolo visual e linguístico de reconhecimento e ser assimilado ao gênero feminino ou masculino. Isso requer um enorme aparato de ficção. É um teatro político."

As decisões sociais e coletivas que determinam um corpo, continuou ele, são "de vida e morte". Isso porque aqueles que não correspondem a esse mecanismo binário, que "entram em dissonância com a linguagem que os identifica", são considerados patológicos. "A lei é uma linguagem de ficção, cuja solidificação é tal que a observamos como se fosse parte da natureza."

No entanto, Preciado se afirmou otimista quanto à superação dessa lógica.

"Eu sou como um arquiteto que olha um edifício e pensa que ele está a ponto de cair. Estamos pondo em questão o próprio binarismo sexual, que não é mais que um mapa que corresponde ao patriarcado colonial. A questão agora é inventar um novo, que possa reconhecer a radical multiplicidade da vida."

Atores políticos como Jair Bolsonaro e a extrema direita europeia, disse o filósofo, são "a tentativa desesperada de segurar esse edifício que vem abaixo".

A mesa foi gravada no sábado passado, e a antecipação foi exigência dos dois autores, segundo a organização da Flip. Foi o único debate que não aconteceu ao vivo, além das três mesas "Zé Kleber", que foram filmadas em Paraty.

A mediação foi do jornalista Ángel Gurría-Quintana —que soube se omitir com elegância e naturalidade enquanto a conversa entre os dois intelectuais engrenava.

A transmissão teve problemas técnicos que tornaram impossível ouvir o áudio original em espanhol de Preciado durante os primeiros 25 minutos da conversa. A Flip continua neste domingo, seu último dia, com mais quatro mesas.

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