De pastiche nazista ao 'pum do palhaço', relembre a política cultural em 2020

Lei Aldir Blanc e queda na Rouanet marcaram ano agitado da Secretaria da Cultura, que teve três titulares em 2020

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São Paulo

Se 2020 foi um ano parado para algumas áreas da cultura, não se pode dizer o mesmo sobre a política que rege esse setor.

Inúmeras crises deram o tom do ano. No Theatro Municipal de São Paulo, edital impugnado e contrato com entidade gestora rompido. Na Cinemateca Brasileira, falta de recursos e demissão em massa. Na Agência Nacional do Cinema, a Ancine, paralisação no Fundo Setorial do Audiovisual e ação do Ministério Público por improbidade administrativa.

Em menos de 12 meses, o governo Bolsonaro teve três secretários especiais da Cultura —pasta que mudou de ministério, saindo da Cidadania e indo parar no Turismo.

Alex Kidd/Folhapress

O ano começou com o dramaturgo Roberto Alvim no comando do órgão. Ao som de Richard Wagner, o então secretário clamou por uma arte nacional que fosse heroica e imperativa, concluindo que “ou então não será nada”. As claras semelhanças com falas do ministro da Propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels, acabaram resultando na demissão de Alvim. ​

Foi então que teve início a breve era Regina Duarte. Antes de a atriz aceitar e assumir o cargo, as negociações dela com Jair Bolsonaro foram pautadas por metáforas e piadinhas com as palavras “namoro”, “noivado” e “casamento”.

O dia de sua posse na secretaria, 4 de março, foi marcado pela forma como ela se referiu à cultura brasileira, falando de “caipirinha de maracujá” e “pum do palhaço”.

Mas também ficou claro que Regina tinha um entendimento diferente de Alvim sobre o que é o setor artístico. Ela fez questão de lembrar, na ocasião, que o presidente teria prometido a ela “carta branca” para nomear quem quisesse.

Na véspera da posse, seis pessoas foram demitidas da secretaria. No dia seguinte, mais 12. O movimento foi entendido como um expurgo da chamada ala ideológica. Entre os demitidos, estavam Dante Mantovani, da Funarte, aluno de Olavo de Carvalho.

Aos poucos, tags de #ForaRegina iam surgindo nas redes.

Nos meses que seguiram, o governo Bolsonaro chegou a reverter nomeações e exonerações feitas pela atriz. Tinha então início o processo de fritura da secretária. Com o aval do presidente, seus aliados passaram a criticar em público.

Em março, quando a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia, vieram pressões da classe artística para que fossem tomadas medidas que atenuassem a crise provocada pelo fechamento de equipamentos culturais.

Passados mais de dois meses, pouco veio de Regina, e os artistas passaram a conversar com congressistas na tentativa de levar adiante a aprovação de um auxílio emergencial.

Essa articulação resultaria na Lei Aldir Blanc, de autoria da deputada Benedita da Silva, do PT, aprovada na Câmara em maio, votada em junho no Senado e regulamentada em meados de agosto pela União. A essa altura, Regina Duarte já não estava mais à frente da secretaria havia três meses.

Em maio, ela deu uma entrevista à CNN Brasil, cantando “Pra Frente Brasil”, espécie de hino informal da ditadura, e dando um chilique ao vivo pelo qual se desculpou depois. Bolsonaro marcou um almoço com o futuro ocupante do cargo, o ator Mario Frias, que assumiu a secretaria em junho.

Em meio à pandemia e à turbulência na pasta da Cultura, o primeiro semestre de 2020 observou uma queda de 35% na captação de recursos via Lei Rouanet em relação ao ano anterior, o maior declive de toda a década. Em agosto, a gestão Frias dispensou 139 pareceristas responsáveis por analisar os projetos culturais.

Uma das primeiras ações do novo secretário foi pedir as chaves da Cinemateca Brasileira à Associação Roquette Pinto, entidade privada que administrava a instituição. O governo argumentava que o contrato com a organização havia terminado no ano passado e que por isso se recusava a fazer repasses à associação —sem recursos, a entidade anunciou a demissão de todos os funcionários da Cinemateca, em agosto.

No mesmo mês, na manhã de uma sexta-feira, representantes do governo federal chegaram à Cinemateca acompanhados de viaturas da Polícia Federal e da Guarda Civil Metropolitana para assumir as chaves do lugar, numa cena que foi a cereja no bolo do processo de transferência de posse para a União.

Mario Frias estrelou um vídeo de campanha do governo, nas redes sociais oficiais homenageando os “heróis brasileiros”, em setembro. Com ar austero e grandioso, a peça foi criticada e satirizada, inclusive pelo humorista Marcelo Adnet, que foi chamado de “criatura imunda” pelo secretário.

Uma semana depois da polêmica, Frias assinou um ofício determinando que todos os órgãos vinculados à Cultura deveriam enviar os seus posts em redes sociais e sites para aprovação pela pasta.

Grande parte da regulamentação da Lei Aldir Blanc foi feita durante a gestão Frias. Foram R$ 3 bilhões transferidos da União a estados, municípios e Distrito Federal —volume e capilaridade sem precedentes na política cultural brasileira.

Frias comemorou o alcance da Aldir Blanc, creditando o sucesso à “liderança do presidente Jair Bolsonaro” e omitindo a autoria do Congresso.

O ano está quase no fim, mas a pandemia não. Ciente disso, o secretário tem tentado estender a Aldir Blanc, em conversas com Bolsonaro. Um projeto, também do PT, tramita na Câmara e pede que o prazo escoe só em dezembro de 2021. Mas isso é assunto para a retrospectiva do ano que vem.

*

Linha do tempo de um ano cheio

Janeiro 

  • Roberto Alvim é exonerado após copiar discurso nazista

Março 

  • A atriz Regina Duarte toma posse na Secretaria Especial da Cultura

Maio 

  • Câmara aprova auxílio emergencial para setor cultural
  • Contrato com Instituto Odeon, entidade gestora do Theatro Municipal, é suspenso
  • Governo federal estuda extinguir Fundação Casa de Rui Barbosa, mas proposta é arquivada meses depois
  • Bolsonaro demite Regina Duarte e promete a ela um cargo na Cinemateca

Junho 

  • Mario Frias toma posse como secretário especial de Cultura
  • Senado aprova Lei Aldir Blanc
  • Manifestantes fazem protesto na Cinemateca antes de o governo assumir gestão

Julho

  • Ancine informa que tem mais de 4.000 projetos com prestação de contas em aberto

Agosto

  • Representantes do governo vão à Cinemateca, acompanhados da polícia para assumir as chaves da instituição
  • Governo regulamenta a Lei Aldir Blanc

Setembro  

  • Ex-assessor de Carlos Bolsonaro é exonerado da Funarte, mas consegue outro cargo na instituição menos de um mês depois
  • Ministério da Economia bloqueia R$ 36 milhões de cinco órgãos da Cultura

Outubro 

  • Tribunal de Contas suspende edital do Theatro Municipal

Dezembro 

  • Ministério Público Federal acusa diretores da Ancine por improbidade administrativa
  • Fundação Cultural Palmares exclui Elza Soares, Gilberto Gil e outras personalidades de lista de homenageados

Colaborou João Perassolo

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