Descrição de chapéu The New York Times

Donald Trump perdeu sua batalha, mas a guerra cultural continua acirrada

Mesmo após a saída do presidente republicano, Estados Unidos ainda viverão disputas ideológicas na cultura pop

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James Poniewozik
The New York Times

Poderíamos dizer que a presidência de Donald Trump terminou concretamente quando as urnas foram fechadas ao final do dia da eleição ou quando os veículos de imprensa declararam a vitória de Joseph Biden.

Segundo uma medida, porém, a presidência de Trump terminou em meados de novembro, quando conservadores online enlouqueceram com uma foto de Harry Styles de vestido.

A foto do cantor na capa da edição de dezembro da revista Vogue levou a personalidade do YouTube Candace Owens a pedir no Twitter “que tragam de volta os homens viris”.

O que tudo isso tem a ver com a saída do presidente? Primeiro, sugere que outros conservadores estejam retomando o papel de “Guerreiro Troll Chefe” que Trump se outorgou. Mas também nos recorda que o tipo de política cultural provocante que precedeu Trump sobreviverá.

Na era de Obama, as guerras terceirizadas sobre cultura ocorriam na periferia do conservadorismo, nas redes sociais e nas discussões de direita.

Com a eleição de Trump, ele próprio uma figura da cultura pop que intuiu a conexão entre o fandom cultural e o tribalismo político, as alas política e de guerra cultural do conservadorismo se fundiram.

Por quatro anos o presidente se preocupou com protestos em partidas da NFL, discursos em cerimônias de premiação da TV, a lealdade da Fox News e o reboot de “Roseanne”. Ele acompanhava e se irritava e se angustiava com o ibope —dele e de programas que via como aliados ou inimigos— com a mesma intensidade que um presidente em tempos de guerra. Agora, o comando da batalha volta da Casa Branca para o campo.

A expressão da política por meio da guerra cultural tem sido um elemento constante da mídia conservadora há décadas. A Fox News criava toda uma produção anual em torno da suposta “guerra ao Natal” (incluindo spinoffs ocasionais como “Papai Noel e Jesus são brancos”).

O apelo era de cunho emocional; as pessoas sentem uma conexão pessoal com as
festas familiares e com seus programas de TV favoritos. Mas era também uma maneira de atrair uma audiência específica num país onde, cada vez mais, as pessoas tinham não apenas ideias políticas distintas, mas também experiências culturais diferentes.

Harry Styles será capa da Vogue em dezembro
Harry Styles será capa da Vogue em dezembro - Twitter/Vogue

Passamos a ter culturas pop identificáveis como sendo vermelha (republicana) ou azul (democrata). Membros do público se alistavam como voluntários na guerra cultural. Para os conservadores, em especial, o viés liberal de Hollywood era fonte útil de queixas, permitindo a eles reivindicar a condição de vítimas culturais.

Visto em retrospectiva, tudo isso não passou de um trailer da era Trump, que começou com “The Apprentice”.

Não é a primeira vez que políticos, especialmente os de direita, se envolvem na guerra cultural. Mas Trump, um filho da TV que se converteu em personagem da TV, entendia a mídia instintivamente. Ele forjara sua persona para os tabloides nos anos 1980.

Trump usou a mídia para inventar um mito sobre seu sucesso nos negócios e sabia que a cultura cria a espécie de conexão visceral com o público.

A política normal argumenta que essas outras pessoas não acreditam no que você acredita. A da guerra cultural argumenta que essas pessoas não amam o que você ama.

Assim, tanto quanto a campanha de Trump tratou da construção de um muro na fronteira, de islamofobia ou de “lei e ordem”, ela também disse respeito a uma promessa de defender e promover a cultura de seus seguidores.

Para um público ao qual foi dito por anos que as celebridades do showbiz desdenhavam de seus valores, era uma celebridade tomando o partido dele. Já presidente, Trump se comprazia em chamar celebridades conservadoras como Kid Rock e Kanye West para ser retratadas com ele.

As fotos pareciam espólios de guerra. E seus críticos celebridades mais ferrenhos frequentemente contribuíam para sua narrativa “eu versus Hollywood”, o xingando na entrega de prêmios ou se digladiando com ele no Twitter.

Rosto de homem branco
Donald Trump em Washington, em 7 de dezembro de 2020 - Saul Loeb / AFP

Trump declarou que a cultura ocidental é superior porque “compomos sinfonias”, transmitindo uma mensagem nacionalista branca subliminar.

O que Trump não fez foi encarar a cultura como uma maneira de encontrar pontos em comum. Ele enxergava a cultura como campo de batalha para inflamar divisões.

Suas queixas constantes contra Hollywood não eram só um esforço para distrair o público, ao estilo do pão e circo. Eram mensagens políticas.

Sua fixação com a audiência correspondia à sua visão de mundo, composta por competição e contagem de pontos.

Em muitos momentos, pelo menos quando se olha em retrospectiva, há um senso de uma nova era cultural começando com uma nova administração presidencial.

A administração Biden ainda não começou, mas não há até agora a impressão de uma mudança definitiva desse tipo. A impressão é mais de que a bandeira se moveu para o outro lado da linha de centro num cabo de guerra contínuo.

As coisas talvez se aquietem. Biden não é um fã tão grande da cultura pop nem um guerreiro cultural tão acirrado.

As divisões são profundas demais, e os incentivos para as ampliar são muito grandes. Afinal, o segredo de uma série de TV de longa duração é sua capacidade de sobreviver a uma mudança no elenco.

Tradução de Clara Allain

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