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Grandeza de Beethoven, que completaria 250 anos, está nos detalhes

Brahms, Wagner e até Sondheim seguiram o exemplo do grande mestre ao construir suas obras com base em pequenos trechos

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Anthony Tommasini
The New York Times

A indústria da música clássica havia planejado uma comemoração monumental para o 250º aniversário de Beethoven, neste ano, que culminaria no dia 16, a data de seu nascimento. Os registros indicam que ele foi batizado em Bonn, Alemanha, no dia 17 de dezembro de 1770. Porque na época era costume realizar o ritual no máximo um dia depois do nascimento do bebê, presume-se que o compositor tenha nascido em 16 de dezembro —ainda que não se saiba ao certo.

Colagem beethoven Jairo Malta
Jairo Malta

Havia apresentações programadas o ano todo, e no mundo todo. A Orquestra Sinfônica de Boston planejava abrir sua temporada, no quarto trimestre, com um ciclo das nove sinfonias de Beethoven. O Barbican Center, de Londres, apresentaria um festival que se estenderia por todo o ano. O Carnegie Hall anunciou que dedicaria cerca de um quinto de sua temporada 2019-2020 à música de Beethoven.

Mas quando a pandemia chegou, a festa de aniversário de Beethoven terminou cancelada, em companhia do resto do calendário mundial de artes cênicas.

Mas não se preocupe: Beethoven está passando muito bem. Como afirmam os materiais promocionais do Carnegie Hall, Beethoven “eleva nossos espíritos, nos causa lágrimas e inspira nossos pensamentos mais profundos”; ele é, “incontestavelmente, a face da música clássica ocidental”. Uau. De fato, me impressionou que a Filarmônica de Nova York tivesse optado em geral por ignorar a efeméride. Em lugar disso, em fevereiro deste ano, a orquestra iniciou o Projeto 19, que celebra o centenário da 19ª emenda à constituição dos Estados Unidos (que conferiu o direito de voto às mulheres), encomendando peças novas a 19 compositoras. Lá estava uma importante empreitada que honraria a herança da qual Beethoven é o epítome, trazendo-o ao presente e conferindo poder a vozes novas.

O domínio de Beethoven sobre a programação de música clássica é um pouco insano. Mas ele era incontestavelmente maravilhoso. Cultivou a mística do compositor como colosso, como visionário, e como herói que abarcava toda a Terra, canalizando mensagens vindas do alto e revelando-as a nós, simples mortais.

Em pessoa, ele talvez não corporificasse essa ideia. Desarrumado e ranzinza, ele abrigava ilusões sobre ter sangue real, se apaixonava constantemente por mulheres da alta sociedade de Viena que estavam completamente fora de seu alcance e, em uma tentativa patética de formar uma família, passou anos disputando nos tribunais para ganhar a guarda de seu sobrinho, por considerar a mãe do menino, viúva, como moralmente inapta. (Ele conseguiu o que desejava, com os resultados desastrosos que seria de esperar.)

Mas talvez sua aparência e modos excêntricos, bem como sua luta corajosa contra a surdez, tenham de alguma maneira contribuído para o encantamento que ele parecia lançar sobre todos. E qualquer que fosse sua personalidade, a música de Beethoven parece definir grandeza e heroísmo.

O que ouvimos, no filme “O Discurso do Rei”, quando o rei George 6º da Inglaterra se dirige aos seus súditos durante a Segunda Guerra Mundial? O movimento lento da sétima sinfonia de Beethoven —música que soa como uma marcha solene e firmemente determinada.

Mas a tradição de buscar esvaziar o aspecto heroico das obras de Beethoven é longa. Em uma resenha de 1945 sobre a quinta sinfonia de Beethoven, executada pela Filarmônica de Nova York sob a regência de George Szell, o compositor Virgil Thomson se refere à tradição de ouvir a peça como música que expressa vitória, destino, a esperança das nações conquistadas de resistir à tirania, e coisas parecidas. E com certeza, ele escreve, Szell regeu “uma versão completamente demagógica e militarizada da obra”. Mas Thomson disse aos ouvintes que não se preocupassem: “A obra vai se recuperar de seu presente serviço militar tão facilmente quanto se recuperou de passadas associações metafísicas e políticas no passado”.

Sim, Beethoven compôs peças heroicas. Mas essas partituras muitas vezes continham também voos audaciosos. E ele escreveu número semelhante de trabalhos escancaradamente cômicos, e até mesmo hilariantes, como o final "presto" de sua "Sonata nº 6 para Piano em Fá", um trabalho de início de carreira que poderia servir como trilha sonora a uma comédia de cinema mudo.

Mesmo o final da sinfonia “Eroica”, apesar de toda sua energia prometeica, é entusiástico e repleto de gracejos musicais. Beethoven toma uma melodia de certo modo cômica e a submete a uma série de variações improváveis mas triunfantes. No entanto, todas essas peças, quer ruidosas, quer quase alucinadas, estranhamente místicas ou sublimes, de alguma forma personificam a grandeza, e soam inevitáveis, como se a música simplesmente tivesse que ter sido feita do modo que foi. Por quê?

Tudo está nos detalhes. Beethoven era mestre —talvez o maior dos mestres— da técnica de usar pequenos motivos (algumas poucas notas, um fragmento de melodia, um gesto rítmico) a fim de gerar todo um movimento e mesmo toda uma composição. Isso é algo que ele aprendeu em parte com Haydn, no período que passou com o velho mestre em Viena, bem como do estudo e da cópia de partituras de Haydn, algo que ele continuou a fazer por anos.

Mas Beethoven conduziu essa técnica a um nível novo de sofisticação. Os espectadores de concertos talvez não captem conscientemente todas as recorrências e as manipulações de motivos que existem em uma peça de Beethoven. Mas esses elementos interrelacionados se revelam subliminarmente, mesmo para aqueles que não têm treinamento musical. É por isso que uma passagem selvagem, como o frenético e dançante movimento final da sétima sinfonia, parece ao mesmo tempo uma entidade coesa e coerente, uma obra verdadeiramente grandiosa.

Atingir a coerência em termos de motivos não era fácil para Beethoven em suas partituras. Leonard Bernstein fez algumas tentativas de explicar esse ponto em palestras televisivas, entre as quais a famosa aula que deu no programa “Omnibus” sobre a quinta sinfonia de Beethoven, em 1954, quando ele examinou de que maneiras as quatro notas iniciais —um motivo musical que costuma ser referido como “destino”— são empregadas para servir de “trampolim para a continuidade sinfônica que está por vir”.

Em seguida, ao piano e diante de uma orquestra, Bernstein executou passagens reproduzidas de rascunhos descartados por Beethoven; ele queria demonstrar o quanto algumas dessas tentativas rejeitadas eram ineficazes —até que o compositor enfim encontra uma solução. Bernstein tratou em profundidade ainda maior dos procedimentos de Beethoven durante as aulas Norton de 1973 (exibidas na TV em 1976), quando ele desmontou o primeiro movimento da sinfonia “Pastoral”. Ele pediu que a audiência abrisse mão de todas as suas preconcepções de que a peça trata de “passarinhos e riachos e prazeres rústicos”, e em seguida revelou de que maneira todo o movimento é construído de material contido nos quatro primeiros compassos da obra.

Os compositores que sucederam Beethoven foram fortemente influenciados por essa técnica, e não apenas Brahms e Mahler em suas sinfonias. Wagner adaptou a abordagem de Beethoven para suas óperas, usando “leitmotifs” para organizar obras com duração de horas. Puccini tinha sua versão do procedimento.

Stephen Sondheim, recém-formado na universidade, estudou as partituras dos quartetos de Beethoven, entre outras obras, nas aulas particulares que fez com o compositor dodecafônico Milton Babbitt. A coisa mais importante que ele aprendeu nessas aulas, me disse Sondheim em uma entrevista muitos anos atrás, foi o princípio da “composição em linha longa”.

“Como você organiza materiais para durar três minutos, 15 minutos, 33 minutos?”, ele disse. “O que aprendi provou ser muito útil quando comecei a escrever canções e cenas longas, como ‘Someone in a Tree’ [de ‘Pacific Overtures’] e a abertura do segundo ato de ‘Sweeney Todd’.”

Em “Merrily We Roll Along”, as canções são “interconectadas por meio de trechos de melodia, ritmos e acompanhamento”, escreveu Sondheim nas notas de contracapa da gravação original do espetáculo. E essa certamente seria a maneira pela qual Beethoven comporia a partitura para um musical da Broadway.

É comum mesmo hoje que eu leia, por exemplo, nas notas do compositor para o programa de uma apresentação, sua explicação de que uma nova peça de música de câmera, escrita como um movimento único de 15 minutos de duração e em linguagem essencialmente atonal, se baseia em um motivo de cinco notas. Beethoven com certeza aprovaria.

No período tardio de sua carreira, Beethoven ingressou em uma esfera que parecia quase mística, e se considerava não só como um compositor, mas como um “Tondichter” [poeta tonal]. Mas mesmo ao explorar esses novos reinos de som e de estrutura, Beethoven gerava suas partituras tardias com base em pequenos motivos. Wagner estudou obsessivamente o Quarteto de Cordas Opus 131, que tem sete movimentos, vendo nele um modelo sobre como estruturar um drama musical.

É revelador que o último concerto a que assisti antes que a pandemia conduzisse ao fechamento das salas de espetáculos em todo o mundo tenha acontecido no Carnegie Hall em 8 de março, quando o violinista Leonidas Kavakos, o violoncelista Yo-Yo Ma e o pianista Emanuel Ax tocaram, sim, Beethoven, encerrando com uma interpretação majestosa e brilhante, interrogativa e impetuosa, do trio “Arquiduque”.

Mesmo que o grande aniversário de Beethoven não tenha corrido da maneira que esperávamos, aquela interpretação soberba de seu trio, pouco antes que tudo parasse, continuou retornando frequentemente à minha memória, como uma festa duradoura.

Tradução de Paulo Migliacci

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