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Isabel Marant, a estilista mãe do cool parisiense, chega ao país cercada de polêmica

Designer francesa acusada de se apropriar de culturas colonizadas abre loja em São Paulo com calças de R$ 25 mil

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São Paulo

Não foi só nos ouvidos da classe média brasileira que o funk se fez ouvir. Nas altas rodas, as daqui e as de fora, agora é legal rebolar em cima do salto. O começo disso foi há três anos, quando a francesa Isabel Marant, de 53 anos, botou os convidados de seu desfile em Paris, na França, para ouvir “dance potranca, da-dance com emoção”, no mesmo setembro em que Anitta se lançava para o mundo.

Depois a Chanel causou comoção com um “tum-ta-ta-tum-ta-ta” embalado na propaganda do perfume Chance e os “pa-pa-pará” rolaram soltos em festas do circuito fashion. Mas só agora a versão gringa desse baile bota os pés já descalços em São Paulo, no primeiro ponto de Marant no país, a ser aberto neste fim de semana no novo Cidade Jardim Shops, fincado no miolo rico dos Jardins.

Os brasileiros não devem esperar, porém, ver na vitrine as blusas de alcinha, os vestidinhos a vácuo ou as cores chocantes que revestem os pancadões. Embora os minishortinhos e os colos descobertos já tenham dado as caras na passarela dessa estilista, no ano passado, num desfile de verão todo inspirado no Brasil, o que chegará por aqui é o que a transformou na mãe do “cool” internacional.

Como tudo o que se torna “descolado” aos olhos da audiência, o repertório de alfaiataria relaxada, as blusas folgadas que mudaram o look das jovens de Paris no início dos 2000, os modelos de tênis que a fizeram uma das mais copiadas do mundo e os elementos gráficos das culturas sul-americanas que ela adora, terá preços muito além daqueles exibidos pela “moda funk” do país.

O boné, item obrigatório dos bailinhos, sairá por R$ 830, e, na ponta da cadeia alimentar, uma calça forrada do patchwork comum ao estilo da grife, sonoros R$ 24.880 —ainda assim, valores mais em conta se comparados aos do prêt-à-porter impressos nas etiquetas de medalhões internacionais.

Quase toda a seleção será de uma linha mais acessível do que a grife principal, que, segundo Isabel Marant afirma, “conserva a ideia de se estar com uma roupa para o dia dia, com bons tecidos, estampas, e menos super arrumada”. “Sim, as taxas [de importação] aumentam muito o preço, o que é triste”, diz ela, que até então só mantinha uma parceria com a multimarcas NK Store.

O que deve seduzir as garotas que puderem pagar por uma lasca do sonho explorado por ela está vinculado à quebra de paradigmas de estilo que ela empreendeu nas ruas europeias, não sem antes ser desdenhada pelo tradicionalismo francês quando começou a produzir seus desfiles, em 1994.

“No meu primeiro show consegui que dez editores fossem assistir. O resto eram meus amigos. Tive sucesso comercial, mas não de crítica. A verdade é que o mundo da moda não é muito bom para mulheres. Além de não sermos vistas e, em algum ponto, haver uma ciumeira feminina, as referências do passado são sempre masculinas”, afirma.

Por isso também que suas mulheres carregam um visual sexy, mas que, na visão dela, não descambam para a vulgaridade, um conceito belicoso que, ela sabe, é uma questão de gosto e também do cinismo de parte da indústria que vende a submissão feminina na publicidade.

“Eu não sou dessas que tenha uma musa, porque as mulheres são minhas musas. Ponho minissaias em minhas coleções, dou possibilidade de ela combinar com outras roupas, usar com jaquetas. O que odeio é a ideia das mulheres como objetos sexuais. Gosto da imagem de ser atrativa, mas não sexual. Porque vulgaridade, quando é assumida, ótimo, mas não todos esses lábios falsos, seios falsos, bundas falsas”, dispara Marant.

Foi isso também, além das linhas de Oscar Niemeyer que passearam por seu verão passado, uma inspiração sobre o Brasil quando há anos visitou a Bahia. Lá, diz, percebeu que “não importa se você é supermalhada, supermagra ou não, há um sentido de felicidade em se estar na própria pele”.

Mesmo mantendo o olhar francês sobre elegância, a estilista ainda prefere o movimento às estruturas rígidas, a mobilidade dos saltos baixos ao incômodo dos agulhas e a aposta em uma salada de culturas e cores que destoam da costura autorreferente francesa. A resposta é o passado.

“Na adolescência, era um pesadelo imaginar ficar duas horas se arrumando. Eu era 'boyish' [estilo vinculado ao guarda-roupa masculino], preferia o que via na [mãe do punk] Patti Smith do que a ideia de moda Yves Saint Laurent, da qual eu tinha rejeição total”, relembra.

Com o tempo, as referências colhidas nos mochilões pelo mundo, misturadas à lembrança da mãe, da madrasta de origem caribenha e do pai, “um típico francês estilo [o ator] Jean Garbin”, fundaram as bases de sua costura multiculturalista.

Ela já pegou grafismos britânicos, referências indianas, estampas mexicanas. Houve de tudo, inclusive acusações de “apropriação cutural”, termo em voga na cultura que, em resumo, se traduz no uso comercial dos signos de culturas dominadas e invisibilizadas por quem um dia as apropriou.

Essa ideia de reparação, que teve como último caso vultoso um episódio com ela no mês passado, quando o governo mexicano questionou o uso de grafismos dos povos originários daquele país em algumas peças, já causou dores de cabeça para nomes de Chanel a Dior, de Valentino a Carolina Herrera.

Diferentemente de alguns de seus pares na moda, Marant aceitou a crítica e, em comunicado emitido à época, sua grife prometeu que, a partir de agora, dará todos os créditos em casos assim.

“Eu entendo as críticas quando dizem ‘olha, você está fazendo dinheiro com nossa cultura’. É compreensível também quando dizem que ‘você está nos roubando’. Sabe, eles estão certos mesmo, mas, olha, até três anos atrás isso não era roubo. Ninguém dava a mínima para isso”, diz Marant.

Ela lembra que, antes de usarem o termo apropriação, o mundo enxergava essa mistura como “riqueza cultural”, e, no caso dela, isso faz mesmo parte de sua mistura sanguínea, um misto de ascendência francesa, alemã e árabe, o que a fez ser atraída pelo caldeirão imagético.

Bem, e se a história da moda decidisse botar em pratos limpos a questão, de Saint Laurent ao Bom Retiro teria de se explicar sobre seus grafismos. E, na arte, até Picasso entraria na berlinda.

“Quando comecei, fazia minhas coisas no quarto. Olhava o mundo sob a perspectiva do que achava bonito e tinha a ver comigo. Acho que com tudo o que vem ocorrendo, haverá uma preocupação de toda indústria e, no meu caso, quero fazer as coisas de forma natural e organizada, com artistas locais fornecedores”, adianta.

O futuro para ela também reserva a continuidade do espírito desgarrado do noticiário e do momento de crise. Ainda que veja algumas marcas optando pela moda “segura, não muito criativa, por pura pressão comercial”, ela prefere rememorar a beleza de quando viu um desfile de Christian Lacroix pela primeira vez, ou quando “se chorava pela beleza dos desfiles de Jean Paul Gaultier”. Na prática, enquanto parte de seus colegas elucubra sobre o apocalipse, fruto das preocupações com o pós-pandemia, ela prefere a ideia de escapismo.

“Sempre me preocupei com a sustentabilidade do mundo, da responsabilidade com o consumo consciente. E, claro, acompanho o que ocorre nas ruas, até porque, moro na [região próxima à praça] Republique, onde ocorrem protestos, e a ideia de revolução, de nunca calar a boca, faz parte de mim. Aliás, do próprio charme francês”, diz.

“Mas, falar do fim do mundo, algo que a Balenciaga fez e super bem feito, para mim é enlouquecedor. Prefiro fazer as pessoas sonharem, se beijarem, coloridas”, explica, mas frisando que “não vive na bolha” encantada da moda.

"No fim das contas, as duas mensagens são relevantes, mas prefiro levar esperança e fazer as pessoas dançarem.” Bem, no caso dela, e na medida do que a roupa deixar, até o chão, chão, chão.

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