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Jeferson Tenório e Regina Porter criticam cobranças a escritores negros na Flip

Brasileiro e americana discutiram as exigências de que autores só escrevam personagens da mesma cor

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São Paulo

"Às vezes me perguntam por que eu decidi não escrever apenas sobre personagens negros", afirmou a americana Regina Porter em sua participação na Flip, neste domingo. "E eu rio disso, porque nós não vivemos num mundo só de negros, vivemos uns bem ao lado dos outros."

As exigências de crítica e leitorado sobre escritores negros foram uma das principais pautas na mesa que a autora de "Os Viajantes" dividiu com Jeferson Tenório, o brasileiro que escreveu "O Avesso da Pele" e "O Beijo na Parede", na tarde deste domingo.

"O autor negro é cobrado a ter apenas personagens dessa cor", concordou o escritor radicado em Porto Alegre. "James Baldwin quebrou com isso em 'O Quarto de Giovanni' e foi acusado por ter colocado apenas personagens brancos. É uma luta."

computador mostra os escritores debatendo
A americana Regina Porter e o brasileiro Jeferson Tenório (acima à dir.) debatem em mesa da Flip, mediada pelo jornalista Guilherme Henrique - Marlene Bergamo/Folhapress

Porter comentou que autores como Baldwin e Toni Morrison, ambos americanos que produziram a partir da metade do século 20, "abriram a porta para escritores negros perseguirem seu trabalho de forma universal".

"Por causa do sacrifício que esses autores fizeram, eu os sinto bem atrás do meu ombro, como um farol aceso para mim", disse ela. "Toni segurou uma grande responsabilidade nos ombros e abriu o caminho para os autores negros que vieram depois escreverem sobre tudo, criarem em qualquer gênero."

Tenório afirmou ser fundamental que os artistas negros não limitem seu escopo de preocupações autorais, assim como os brancos não limitam.

Para ele, isso é mais um reflexo do racismo estrutural. "Os brancos nao têm que se preocupar se seus personagens são todos brancos. Quer dizer, talvez hoje se preocupem. Mas isso é uma preocupação para escritores negros desde sempre."

Usando como exemplo seu elogiado "O Avesso da Pele", ele comentou que o objetivo não foi escrever uma obra sobre violência racial —a história traz um jovem negro de 22 anos que recria a vida do pai, um professor morto a tiros numa abordagem truculenta da polícia em Porto Alegre.

"Meu livro não é sobre racismo, não é sobre brutalidade policial. É um livro sobre o afeto. É uma homenagem aos professores, aos livros, a uma pessoa que, apesar de toda a violência, ainda acredita nessas coisas."

O autor ressaltou a importância de mostrar os personagens negros em toda a sua individualidade, como é natural em toda criação literária, e assim não sugerir que todas as pessoas negras pensam de uma mesma forma.

"Os escritores carregam estrangeiros dentro de si", afirmou Tenório. "Nós temos que migrar de encontro a eles, mas não necessariamente os resolver. Isso significa colocá-los no livro como personagens com todas as suas contradições e suas complexidades, para que atravessamentos como a sexualidade e a raça apareçam, mas não como a base da obra."

Porter comentou que os personagens de seu "Os Viajantes", que acompanha dezenas de pessoas ao longo de 60 anos de história americana, foram pensados antes que ela soubesse que raça teriam.

Tenório comentou ainda que Henrique, o pai do protagonista de seu romance, tem um relacionamento problemático com uma mulher branca na juventude e também uma relação conflituosa com a mãe de seu filho, Martha, que é negra e tem visões distintas das dele sobre a questão racial —e sobre muitos outros aspectos da vida.

"São afetos que fazem parte de todas as pessoas, independentemente da cor. O relacionamento conturbado deles é fruto também de como as relações raciais constituíram suas vidas. A subjetividade também é construida a partir da relação das pessoas com as instituições, com as estruturas da sociedade. E a estrutura do Brasil é racista. Não é um Estado apesar do racismo, mas um Estado com o racismo."

A mesa foi mediada pelo jornalista Guilherme Henrique. A Flip continua neste domingo com mais duas mesas virtuais, com conversas entre Jota Mombaça e Danez Smith e entre Luz Ribeiro e Nathalia Leal.

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