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'M-8' embala drama sobre racismo com narrativa de suspense sobrenatural

Novo filme de Jeferson De retrata um calouro de medicina negro às voltas com fantasmas da violência e da impunidade

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São Paulo

A princípio, “M-8 - Quando a Morte Socorre a Vida”, que estreia nos cinemas agora, tem todo o jeito de filme de suspense. Cadáveres que de repente abrem os olhos e que parecem perseguir os vivos, seus vultos surgindo por todos os cantos, sonhos imersos em formol —as convenções do gênero pontuam as primeiras cenas.

É verdade que Maurício, papel de Juan Paiva, o calouro de medicina que protagoniza o longa, parece estar cercado de mortos, como nota uma personagem a certa altura.

A começar pelo laboratório de anatomia, onde os cadáveres que ele e os outros estudantes dissecam têm todos a mesma cor de pele que ele, caso do M-8 do título. “Vocês repararam que todos os corpos do laboratórios são pretos?”, ele pergunta aos colegas de turma, todos brancos.

Aos poucos, porém, fica claro que o terror do filme não tem origem em fantasmas, mas em questões concretas da realidade do país —racismo, violência, impunidade.

Os mortos que convivem com Maurício só ajudam a evidenciar esses problemas, diz Jeferson De, diretor do longa.

“Assim como a morte do Beto no Carrefour ilumina a nossa existência cotidiana, nos diz o que fazer em seguida, o M-8 também ilumina o caminho do Maurício”, afirma De, em referência ao homem negro espancado e morto por seguranças de um supermercado Carrefour de Porto Alegre no mês passado, na véspera do Dia da Consciência Negra.

“É só a partir daquele cadáver que ele passa a prestar atenção ao seu entorno, a enxergar respostas.”

O filme foi rodado dois anos atrás, adaptado de um livro de mesmo nome do escritor Salomão Polakiewicz a convite da produtora Iafa Britz. A história original era um pouco diferente, no entanto. O protagonista era bolsista numa faculdade particular, e não um cotista. A religião era católica, e não de matriz afro.

De afirma que as mudanças na adaptação foram muito inspiradas na sua trajetória pessoal. “Brinco que este foi um filme que começou como de produtor e terminou como de autor. Olho para ele e vejo um filme meu”, diz o cineasta.

“Não só porque dirigi e escrevi, mas porque trouxe para a equipe do filme profissionais negros”, ele acrescenta, mencionando que diretor de fotografia e editor são negros, sem falar da trilha sonora, do rapper Rincon Sapiência.

Na tela, estão muitos dos princípios de um cinema que o diretor ajudou a propor na virada dos anos 2000 —o do Dogma Feijoada, que lutava por mais representatividade negra no audiovisual nacional.

É um cinema que o diretor diz só ter conseguido realizar agora, duas décadas depois. “Então tem um lugar de muita paciência, já que o cinema brasileiro também é um lugar de racismo estrutural.”

Ao mesmo tempo, De diz que viu as coisas evoluírem muito nesse período, com o surgimento de dezenas de cineastas negros e a criação da Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro, a Apan.

O que falta, afirma o diretor, é um cronograma para essa mudança, a exemplo do que fez o Oscar, com exigências de diversidade na frente e por trás das câmeras que passam a valer para a cerimônia de 2024. “Sinto que no Brasil temos objetivos e boas intenções, mas não temos data para elas acontecerem. E isso é muito importante.”

O próximo longa de De não deixa de ser mais um passo nesse sentido. Ele finaliza uma biografia sobre o abolicionista Luiz Gama, com previsão de estreia no ano que vem.

“O cinema brasileiro sempre abordou a contribuição dos negros para o samba, a culinária, a religiosidade. Mas quando pensamos o Brasil republicano, intelectual, sempre lembramos de outras figuras, como Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa e até a princesa Isabel”, ele diz, lembrando outros nomes centrais para o fim da escravidão aqui, brancos.

“Essa é a grande mudança de paradigma num Brasil que só quer nos ver ligados à violência. E é também um pouco o lugar do Maurício, que começa a trama entrando na universidade. De certa forma, acho que estou fazendo o mesmo filme.”

Questionado sobre como é lançar “M-8” tão pouco tempo depois do episódio no Carrefour, o artista responde que, infelizmente, é um sinal de que o retrato do racismo forjado pelo longa segue forte. Ele dá como exemplo uma cena em que um policial pisa no pescoço do protagonista.

“Vimos essa mesma imagem que eu havia inserido na ficção repetida com George Floyd, no supermercado Extra no Rio [estrangulado por um segurança, que o acusava de fingir um desmaio, em fevereiro de 2019], e
agora no Carrefour”, diz De.

“E não há nenhum sinal de que isso vá deixar de acontecer. Em especial quando temos um vice-presidente e um presidente que dizem que não há racismo.”

M8 - Quando a Morte Socorre a Vida

  • Preço Em cartaz
  • Elenco Juan Paiva, Giulia Gayoso, Bruno Peixoto, Mariana Nunes
  • Produção Brasil, 2019
  • Direção Jeferson De
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