Descrição de chapéu Livros Clarice 100

Música, teatro e cinema enfrentaram a poesia reveladora de Clarice

Artistas que transpuseram a autora a outros campos incluem Maria Bethânia, Luiz Fernando Carvalho e Fauzi Arap

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Nádia Battella Gotlib

Professora de literatura brasileira, é autora de "Clarice, uma Vida Que Se Conta" (1995) e "Clarice Fotobiografia" (2008), ambos pela Edusp

A literatura de Clarice Lispector, entre tantas experiências inusitadas que nos oferece, tem o poder de levar seu leitor a um confronto com detalhes banais do cotidiano, antes não percebidos.

É o que propõe ora em textos mais breves, objetivos e diretos, ora quando envereda por labirintos surpreendentemente reveladores das experiências humana e animal, percorrendo um território ilógico que ela chama de “por trás do pensamento”. Eis aí algumas das vias enfrentadas no trabalho de transposição de sua obra para outras linguagens, a música, o teatro, o cinema.

Lampejos da carga poética dessa linguagem nos chegam pelas trilhas da música, transfiguradas em sons e em versos que levam ouvintes a considerar a autora "poeta", ainda que ela tenha sempre cultivado a prosa, não raro uma prosa acentuadamente poética, como em "Água Viva".

Desse livro de 1973 emerge o apelo a “Que o Deus Venha”, na voz de um Cazuza, de uma Cássia Eller, de um Frejat. Ou o som envolve crônicas-fragmentos, na voz de Adriana Capparelli e Leila Pinheiro.

Com Maria Bethânia, que gosta “de cantar e falar”, as palavras de Clarice ganham com frequência os palcos de shows musicais, desde o primeiro deles, “Comigo Me Desavim”, de 1967, em que lê “Mineirinho”, uma das mais contundentes crônicas de denúncia da violência instalada na sociedade brasileira. Em shows seguintes, mantém essas oralizações, como em “A Hora da Estrela”, de 1984.

Já textos mais longos chegam aos palcos do teatro em peças montadas a partir da colagem de trechos variados. Fauzi Arap, em 1965, é o primeiro a montar espetáculos, baseado em "Perto do Coração Selvagem, "A Paixão Segundo G.H." e "A Legião Estrangeira". A partir daí, surgem espetáculos protagonizados, entre outros, por Aracy Balabanian, Rita Elmôr, Beth Goulart.

A atriz Beth Goulart, caracterizada como a escritora Clarice Lispector na peça teatral "Simplesmente Eu" - Lenise Pinheiro/Folhapress

Entre os romances, é "A Hora da Estrela" que ganha maior número de adaptações. E "G. H.", interpretada por Mariana Lima, leva o público a se movimentar nos espaços do teatro —o espectador segue a mulher no seu trajeto da sala para o quarto de empregada. Esse mesmo romance ganhou espetáculo de dança por Marilena Ansaldi.

Nas telas de cinema sua literatura aparece em várias adaptações. É o caso de curtas-metragens, como “Clandestina Felicidade”, de Marcelo Gomes e Beto Normal. E de contos do livro "A Via-Crúcis do Corpo", escritos sob encomenda e sobre um só tema –o sexo, em linguagem direta, objetiva, com episódios bem definidos.

“Ruído de Passos” registra a história de uma viúva octogenária com um desejo sexual que parece não ter fim. Ressaltemos, na adaptação de Denise Gonçalves, a cena de nudez da protagonista idosa, bem interpretada pela atriz francesa René Gumiel, em cena de forte apelo erótico e beleza plástica.

E “O Corpo”, que ganha adaptação em longa-metragem, por José Antonio Garcia, traz um enredo de bigamia, traição, assassinato, interpretado por Antonio Fagundes, Marieta Severo, Cláudia Jimenez e Carla Camurati.

Também Suzana Amaral adaptou “A Hora da Estrela”, em 1985, filme premiado em que se conta uma das três histórias do romance –no caso, a narrativa de Macabéa, a nordestina pobre que vive no Rio de Janeiro.

Ao fazer essa opção, há de se considerar que duas outras camadas narrativas foram descartadas pela cineasta –a de Clarice autora, inscrita no livro, assinando seu nome entre os 13 títulos, e a de Rodrigo S. M., personagem escritor e narrador, que conta também a sua história, indissociada do relato de composição da novela protagonizada por Macabéa.

Neste ano, mais um longa-metragem é lançado, “O Livro dos Prazeres”, adaptação livre por Marcela Lordy, do romance "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres". No romance se desenha um suporte mítico ao revés –Lóri viaja; Ulisses, tal como Penélope, espera por Lóri, até que esteja pronta para o relacionamento amoroso.

A cena final do filme, de relacionamento sexual, clímax do processo, levanta dúvidas de interpretação sobre o próprio romance. Seria esse, de fato, o "fim" a que se destina todo o percurso desenvolvido ao longo dessa obra de Clarice?

Já no longa-metragem “A Paixão Segundo G. H.”, com estreia prevista para 2021, o cineasta Luiz Fernando Carvalho segue o fluxo do desdobramento temporal entre a voz que narra e a que vive a história narrada, interpretada pela atriz Maria Fernanda Cândido, com um olhar que nos fisga de modo implacável.

Um dos traços mais marcantes do cineasta talvez seja, entre tantos, o modo como elabora o diálogo entre cinema e literatura, alcançando componentes figurativos de alto teor inventivo, ao recriar essa terrível e sedutora história de paixão, movida a toda sorte de deslocamentos, desvios, turbulências, que, justamente por se constituir nesse despojamento de invólucros repressores, assume postura revolucionária.

Mas a postura revolucionária de ambos —romance e filme— não está só na desmontagem de valores convencionais entranhados no nível episódico da ação da personagem. Está, acima de tudo, no próprio repertório operacional mobilizado na construção das narrativas.

E com uma vantagem –a de conseguirem, ambos, escritora e cineasta, resguardar o mistério que nos cerca, marca do "ser Clarice". Pois “a coisa nunca pode ser realmente tocada.”

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