O ano termina como momento perturbador e inesquecível para as artes

Além de feiras canceladas e museus fechados, temporada lança novos olhares sobre obras coloniais

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Jackie Wullschläger
Financial Times

A arte passou pelo ano de 2020 da mesma forma que o abade Sieyès explicou o que fez durante o terror que se seguiu à Revolução Francesa —“eu sobrevivi”—, aos solavancos, desordenada, reconfigurada e resiliente.

As imagens mais bonitas do planeta passaram meses ocultas.

A impiedosa deusa, as límpidas ninfas e o malfadado caçador retratados na série “Diana” passaram meses nas trevas como parte da exposição da National Gallery britânica sobre Ticiano, que fechou as portas uma semana depois de sua abertura, em março; reaberta em julho, ela voltou a fechar, retornando de novo em novembro, e uma vez mais em dezembro.

Depois de uma década de preparativos, a reveladora mostra “Van Eyck: Uma Revolução Óptica”, no Museu de Belas Artes de Ghent, na Bélgica, ficou só 41 dias em cartaz. Mas o sensual anjo de asas vermelhas, aparentemente descido diretamente do paraíso para servir como peça de altar na igreja de São Bavão de Ghent, e as imagens fantasmagoricamente naturalistas dos santos e dos citadinos flamengos que o ladeiam, ainda brilham intensamente como lembranças consoladoras.

A mostra sobre Van Eyck acaba de conquistar o prêmio Apollo como melhor exposição do ano, em meio a uma lista esplêndida de finalistas que incluía a combativa mostra de Artemisia Gentileschi na National Gallery de Londres e a exposição do Louvre sobre Leonardo da Vinci.

Depois da pandemia, se os orçamentos fortemente reduzidos dos museus tornarem as grandes exposições escassas e se as viagens culturais internacionais jamais vierem a se recuperar, 2020 terá sido o ano do canto do cisne –Rafael em Roma, Matisse em Paris, Monet em Berlim, El Greco em Chicago.

Escultura de anjo triste
'Two Angels with the Instruments of the Passion', de Tydeman Maes - Museu Nacional do Prado
Os museus fechados servem para nos informar sobre aquilo que poderíamos ver mas não vimos, e as feiras canceladas para nos informar sobre aquilo que nem mesmo poderíamos ver. E, para o bem e para o mal, a arte espelhou as mudanças econômicas e sociais causadas pela Covid-19.

A distância entre os ricos e o resto do planeta se alargou –£ 13,9 milhões, ou R$ 97,9 milhões, pelo magnífico “Boiler House”, de Peter Doig, num leilão na Christie’s em outubro, e ao mesmo tempo 95% dos artistas reportando quedas de renda.
Muitos deles não venderam obra alguma o ano inteiro.
A arte, como as pessoas, ficou em casa; uma rara bienal, a quixotesca “And Suddenly It All Blossoms”, ou algo como e subitamente tudo floresce, em Riga, na Letônia, provou que aquilo que é local pode ser ao mesmo tempo universal e persuasivo. “Currents”, de Lina Lapelyte e Mantas Petraitis, mostrava 2.000 troncos de pinheiro descendo pelo rio Daugava, uma “rodovia de jangadas”, harmonia entre o homem e a natureza.

“Mudmen”, uma instalação de terra e palha de Augustus Serapinas —que deveria ter resultado em homens de neve, mas a neve não caiu— era como um coral de sereias cantando sobre a mudança do clima, cruzando referências entre os montes de feno de Monet e os camponeses sem rosto de Malevich.

Ainda que a arte, como todo o resto da vida, tenha se transferido para as redes, ela logo formou elos por lá. Tudo começou a parecer o mesmo, e ver uma exposição, afinal, é um prazer social.

Na ausência do engajamento físico com objetos, o movimento real era conceitual. A arte se ligou mais que nunca às ideias, à informação e à política —que, diferentemente de quadros, viajam bem virtualmente.

Isso reforçou o que teria acontecido de qualquer forma. Embora a Covid-19 tenha causado uma crise para os museus, o ímpeto acumulado pelos protestos do movimento Black Lives Matter forçou algo mais profundo a acontecer –uma crise moral, que se tornou aparente em diversos momentos definitivos, depois da reabertura de instituições no terceiro e no quarto trimestre deste ano.

Em agosto, o Museu Britânico removeu o busto de seu fundador, o comerciante de escravos Hans Sloane, para um gabinete na chamada “Galeria do Iluminismo”, contextualizando o imperialismo e a escravatura.

Hartwig Fischer, o diretor da instituição, disse que os tirou "de um pedestal onde ninguém olhava para ele" e o pôs "sob os holofotes” —onde o museu pode se investigar e investigar seu passado.

Em setembro, a Tate Gallery, em companhia de museus americanos parceiros, adiou a retrospectiva que realizaria em 2021 sobre o pintor judeu branco Philip Guston, para 2024. O uso de imagens do Ku Klux Klan nos quadros de Guston servia para confrontar a banalidade do mal, a cumplicidade no racismo.

Pintura de Philip Guston mostra homens encapuzados do Ku Klux Klan - Reprodução

“Na situação atual dos Estados Unidos, porque Guston se apropriou de imagens traumáticas para os negros, a mostra precisa ser sobre mais do que Guston”, disse Kaywin Feldman, diretora da National Gallery dos Estados Unidos, em Washington. “Não estávamos preparados para isso. Uma mostra com comentários tão fortes sobre raça não pode ser organizada exclusivamente por curadores brancos.”


Mark Godfrey, curador da Tate Gallery, foi contra a decisão, a definindo como “extremamente condescendente para com os espectadores, presumidos como incapazes de apreciar as nuanças e o aspecto político da obra de Guston”. Ele foi suspenso do posto pela declaração.

Em novembro, o Musée du Quai Branly, em Paris, foi forçado por uma decisão do Senado francês a devolver ao Benim 26 esculturas saqueadas do país por franceses um século atrás.

“É uma questão de justiça e de pôr em vigor uma nova ética relacional”, disse Bénédicte Savoy, professora de arte francesa a quem foi solicitado pelo presidente francês Emmanuel Macron que preparasse um relatório sobre restituição de obras de arte da era colonial, em colaboração com o economista senegalês Felwine Sarr.

Mesmo antes que as estátuas da era colonial começassem a ser derrubadas de seus pedestais, as instituições públicas europeias já estavam começando a questionar a memória cultural.

O Rijksmuseum de Amsterdã, famoso por seu acervo de obras de Rembrandt, já tinha escolhido a escravidão como tema de sua principal mostra em 2021.

A Tate Gallery já havia planejado a mostra “Britain and the Caribbean”, para o ano que vem. Agora, ansiosas por diversificar seus catálogos, as galerias comerciais também estão em busca de artistas negros. A Hauser & Wirth acaba de ampliar sua lista já diversificada de representados, ao assinar com o pintor abstrato negro Frank Bowling.

As condições desanimadoras do mercado —o faturamento com arte tinha caído em 36% até a metade do ano, de acordo com uma pesquisa da Art Basel e do banco UBS— não impediu a Gallery 1957, de Acra, de inaugurar sua filial londrina neste ano, com uma mostra de quadros figurativos carismaticamente elegantes do pintor ganense Kwesi Botchway, de 26 anos.

São trabalhos cromaticamente deslumbrantes —o púrpura é o novo preto, com suas conotações de privilégio; olhos alaranjados brilhantes, penetrantes, poderosos; redemoinhos impressionistas de pele negra lisa sob um casaco de pele esverdeado, em “Green Fluffy Coat”.

Botchway é um dos pintores mais interessantes que estão surgindo no cenário internacional —e isso talvez aconteça não só por ele ser prodigiosamente talentoso, mas por ter algo a dizer.

O curador Eskow Eshun deu à mostra da Gallery 1957 o título “Becoming as Well as Being”, ou vir a ser além de ser, argumentando que os quadros são “sobre a maneira pela qual entendemos a negritude não como uma proposição fixa, mas sim como uma maneira de navegar o mundo”.

O nome vem de um ensaio publicado em 1996 por Stuart Hall, “Identidade Cultural e Diáspora”. Porque a representação das vidas negras traz um gume político à pintura, um aspecto fascinante da corrida dos museus para exibir artistas negros é que isso legitima uma mídia, a pintura figurativa, em instituições que há muito tempo se tornaram estufas de arte conceitual.

Há um belo quadro que mostra uma flor, em exposição na Serpentine Gallery de Londres. Intitulado “Say Her Name”, o trabalho relembra a morte em custódia policial de Sandra Bland, e foi pintado por Jennifer Packer, de 36 anos, uma pintora negra americana.

A Serpentine organizou sua primeira mostra europeia num museu. “Remain, Thriving”, de Njideka Akunyili Crosby, o original para o mural pintado na estação de metrô londrina de Brixton que mostra uma família negra acompanhando o desenrolar do escândalo Windrush, acaba de ser adquirido para o acervo da Tate.

Quadro com pintura de plantas e flores
'Say Her Name', de 2017, de Jennifer Packer, - Divulgação

Uma nova pintura histórica está nascendo da urgência das narrativas de trauma, injustiça e exclusão. A imagem do ano na pintura, em exposição na Petzel Gallery de Nova York, é o suntuoso “The Pall Bearers”, de Derek Fordjour. Seis homens negros em ternos arroxeados, glamorosos mas tristonhos e vulneráveis, percorrem o quadro carregando um caixão dourado que lembra o de George Floyd.

O movimento Black Lives Matter ficou com o primeiro lugar no ranking “Art Power 100” da ArtReview, que saiu neste mês.

Só um artista individual —o pintor negro americano Arthur Jafa— ficou entre os dez primeiros lugares do ranking, em companhia de escritores negros como Fred Moten, Saidiya Hartman e Felwine Sarr, e da curadora Thelma Golden, numa lista sem precedentes dominada por movimentos de protesto, coletivos e teóricos.

A ArtReview é uma revista para pessoas bem informadas e usualmente não se relaciona muito com o mercado mais convencional que resulta em exposições de obras dos velhos mestres —mas o ranking de 2020 da publicação declara influências que darão forma às mostras e leituras de arte em toda parte, pelos próximos dez anos, com a mudança de balanço nas coleções e instituições.

Aberta na semana passada, a mostra final da National Gallery britânica em 2020 é um arauto clamoroso de mudança –e vem do ramo dos estudos tradicionais de arte renascentista.

O foco da exposição é “Adoração dos Reis Magos”, de 1510, um panorama ornamental repleto de figuras, animais e tecidos, tudo isso animado pelo posicionamento dinâmico e pelos gestos de Baltazar, o rei mago negro, com seus trajes dourados e seu nome inscrito no chapéu decorado por joias que ele traz à cabeça.

Ele parece estar dando o primeiro passo, nervoso mas determinado, dos edifícios arruinados da velha ordem rumo ao mundo novo, incerto mas pleno de esperança.

Retrato mostra pintura de várias pessoas ao redor de bebê em colo de mãe
"The Adoration of the Kings", de 1510, de Jan Gossaert - National Gallery, London

Tradução de Paulo Migliacci

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