Descrição de chapéu The New York Times Cinema

O tão alardeado fim dos cinemas pode enfim estar perto de ocorrer

Nunca na história de Hollywood tanta turbulência chegou tão rapidamente, ameaçando o futuro das telas grandes

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Los Angeles | The New York Times

“Hollywood é como o Egito, cheio de pirâmides desmoronando. Nunca vai voltar como era antes. Vai continuar desmoronando até que finalmente o vento leve embora o último adereço de estúdio.”

Essa previsão foi feita em 1951 por um produtor da era de ouro de Hollywood, David O. Selznick. A TV estava emasculando o cinema, e os estúdios começavam a se fossilizar, norteados pelo lucro. Nas palavras de Selznick, Hollywood fora “dominada por um grupinho de contadores e convertida numa indústria de sucata”.

De lá para cá, Hollywood já escreveu seu próprio obituário diversas vezes. Por baixo de toda a turbulência, porém, a essência da indústria do cinema permaneceu intacta.

Entretanto, o momento de crise agora é diferente. Nunca nos 110 anos de história da indústria cinematográfica americana tanta turbulência chegou tão rapidamente e em tantas frentes, deixando roteiristas, diretores, executivos, agentes e outros profissionais desorientados e desmoralizados. São pessoas melodramáticas por sua própria natureza, mas se você conversar com várias delas, sairá com a impressão de que o medo delas é real desta vez.

Entrada de estúdio completamente vazia
Portões dos estúdios da Universal, nos arredores de Los Angeles  - Philip Cheung/The New York Times

Será que o streaming, o coronavírus e outros desafios se somaram para finalmente jogar por terra os últimos resquícios de Hollywood?

“Os últimos nove meses abalaram a indústria cinematográfica até seu íntimo”, diz Jason Blum, produtor cujos créditos incluem da série “The Purge” a “Infiltrado na Klan”.

Não é de hoje que o streaming subverte a indústria. A Netflix começou a transmitir filmes e séries pela internet em 2007. Em 2017 a Disney já estava tentando carregar suas próprias ambições de streaming, fazendo uma oferta de compra da Fox, de Rupert Murdoch. Ela acabou por engolir a maior parte da companhia, pagando US$ 71,3 bilhões, para ampliar seu catálogo e ganhar controle da Hulu.

Mas o movimento em direção ao streaming se acelerou tremendamente nos últimos meses. Com mais de metade dos 5.477 cinemas dos Estados Unidos ainda fechados, mais de uma dúzia de filmes foram redirecionados para o vídeo sob demanda. A aventura mais recente da Pixar, “Soul”, vai estrear no Natal, só no Disney+. Vai competir com “Mulher-Maravilha 1984” da Warner, que chegará aos cinemas e à HBO Max. Para analistas do setor, será um momento decisivo e irreversível.

Enquanto isso, a dona da Regal Cinemas, a segunda maior rede multiplex na América do Norte, acaba de contrair uma dívida emergencial para evitar a insolvência. E a Associação Nacional de Proprietários de Cinemas se viu obrigada a mendigar um pacote de socorro federal. Se não for dado, avisou, “cinemas de todo o país correm o risco de desligar as luzes para sempre”.

Hollywood enfrenta outros desafios concomitantes. A revolta provocada pelo assassinato de George Floyd por um policial forçou a capital do cinema a encarar sua própria contribuição para o racismo.

Os fechamentos de produções impostos pelo coronavírus deixaram ociosos dezenas de milhares de profissionais do entretenimento e prejudicaram as duas maiores agências de talentos, Creative Artists e William Morris Endeavor. O resultado foi uma diáspora de agentes, alguns abrindo firmas concorrentes.

Houve uma troca da guarda nos mais altos escalões de Hollywood, e isso vem contribuindo para um clima de vazio de poder. Nove das 20 pessoas mais poderosas do showbusiness, segundo um ranking de um ano atrás da revista Hollywood Reporter, deixaram seus postos por motivos diversos.

Entre elas estão o primeiro da lista, Robert Iger, que deixou o cargo de executivo-chefe da Disney em fevereiro deste ano, e Ron Meyer, o 11º colocado, cuja carreira de 25 anos na Universal terminou em agosto em meio a um complô envolvendo extorsão.

Numa conversa telefônica que mais pareceu uma sessão de terapia, um executivo da Warner afirma que “a cidade” estava com ar de um set de filmagem desmontado, as fachadas faiscantes tinham sido arrancadas, revelando meros mortais andando de um lado a outro, sem saber bem o que fazer”.

Nem todo mundo em Hollywood está vagando de um lado a outro sem saber bem o que fazer. Algumas pessoas estão até parecendo energizadas —especialmente as que passaram sua vida profissional atacando o status quo.

Ava DuVernay nunca hesitou em falar da necessidade de os estúdios se reformarem —diversificarem dramaticamente seus altos escalões, povoados quase inteiramente por homens brancos, e priorizarem a contagem de histórias de um caleidoscópio de vozes. “Enxergo o momento atual como um tempo de oportunidades”, diz a cineasta. “Às vezes é preciso desmontar até a base para construir algo novo.”

“Ouço pessoas dizendo que não veem a hora de Hollywood voltar ao normal. Sou contra. O normal não era bom o suficiente. Estas transformações em tão pouco tempo revelam claramente como os alicerces já eram instáveis.”

DuVernay, cujos créditos incluem “Selma”, “Queen Sugar” e “Olhos que Condenam”, foi além. “Algumas pessoas estão assustadas, e entendo”, afirma. “Mas são principalmente as pessoas que se agarram à ideia de que Hollywood pertence a elas e foi erguida com a cara delas. Essas pessoas farão qualquer coisa para se aferrar a Hollywood, mesmo que isso signifique a destruir.”

Ela ironiza os pessimistas que se angustiam, dizendo que o hábito de ir ao cinema será perdido. “Fazem drama. Os cinemas não vão desaparecer —não todos, pelo menos.”

Na realidade, os cinemas multiplex podem ver seu público crescer quando a pandemia terminar. Pelo fato de tantos estúdios terem adiado o lançamento de seus maiores filmes, o calendário de lançamentos do próximo verão americano parece um paraíso de blockbusters —“Viúva Negra”, “Velozes e Furiosos 9”, “Invocação do Mal 3”, “Ghostbusters: Mais Além”, “Minions 2”, “Top Gun: Maverick”, “Shang-Chi and the Legend of the Ten Rings”, da Marvel, “Hotel Transilvânia 4” e “Venom: Tempo de Carnificina” (para citar só alguns deles).

Com sorte, dizem os chefes dos estúdios, o público recém-vacinado vai lotar os cinemas, em parte porque as pessoas terão adquirido uma nova apreciação pela experiência de ir ao cinema, sabendo que não é uma coisa garantida.

No Japão, onde os cinemas já voltaram plenamente, mais de 3,4 milhões de pessoas saíram de casa para ver um filme de animação, “Demon Slayer”, em seu fim de semana de estreia. Um cinema de Tóquio programou 42 sessões num dia para atender à demanda.

“Há uma razão por que os os loucos anos 1920 ocorreram após a pandemia de 1918”, diz por telefone o diretor J. J. Abrams. “Temos uma necessidade represada de estarmos com outras pessoas. E não há nada mais instigante do que estar em um cinema com gente que você não conhece. É uma necessidade social.”
A previsão dele é que os serviços de streaming e os cinemas vão acabar coexistindo.

“Ir ao cinema é como ir à igreja, e assistir a um filme em casa é como fazer uma oração em casa”, diz. “Não é que você não possa fazer. Mas a experiência é totalmente diferente.”

Mas o que vai acontecer em 2022, depois que a emoção de estar na companhia de muitas outras pessoas se dissipar e os estúdios tiverem esgotado seu estoque de blockbusters, enquanto os serviços de streaming continuam fortes?

Será que os jovens terão o hábito de ir ao cinema, como faziam seus pais e avós? A geração Z é um público crucial. Segundo a Motion Picture Association, 33% dos frequentadores de cinemas nos Estados Unidos e no Canadá no ano passado tinham menos de 24 anos.

“Há uma demanda represada de ver filmes no cinema”, diz Peter Chernin, cuja carreira em Hollywood já dura quatro décadas. “Mas as pessoas podem mudar seus hábitos.”

Chernin, que lançou megaproduções como “Titanic” e “Avatar”, alinhou sua empresa com a Netflix, em que
cuida de mais de 70 títulos em desenvolvimento. Os filmes, que são sua especialidade —dramas de alta qualidade como “Estrelas Além do Tempo” e “Ford vs. Ferrari”—, são uma espécie em extinção nos cinemas. É difícil ganhar dinheiro quando as campanhas de marketing custam a partir de US$ 30 milhões.
Mas o público também se deslocou. A maioria das pessoas parece não ter problema em assistir a esses filmes em casa —e até em smartphones.

“O cinema como forma de arte não vai morrer”, diz Michael Shamberg, produtor de filmes como “Erin Brockovich” e, apropriadamente, “Contágio”. “Mas a tradição com a qual crescemos, que envolve se apaixonar pelo cinema enquanto se assiste a filmes, acabou. O cinema precisa ser redefinido. Muita gente parece não estar preparada para admitir.”

Em outras palavras, a arte pode continuar viva, mas o mito das telonas como o começo e o fim de tudo está sendo desfeito de maneira fundamental e talvez irreversível.

Devido à pandemia, o Oscar decidiu permitir que filmes exibidos em streaming passem ao largo de exibições em cinemas e possam se candidatar ao prêmio. A Academia qualificou a medida como temporária, mas alguns, entre eles DuVernay, acham que será difícil voltar atrás.

A corrida ao Oscar vai se acelerar com o lançamento de “Mank”, de David Fincher. Ambientado principalmente na década de 1930 e filmado em preto e branco, enfoca a era romântica de Hollywood, contando uma história sobre a criação de “Cidadão Kane”.

Tradução de Clara Allain

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