Descrição de chapéu The New York Times

Obras roubadas por nazistas não vão para herdeiros e Holanda sofre ataques

Comissão de Restituições alegava que objetos haviam se tornado mais importantes para museus

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Nina Siegal
Amsterdã | The New York Times

Por anos, a Holanda recebeu elogios como líder nos esforços para remediar as injustiças relacionadas ao roubo generalizado de obras de arte pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. O país foi aplaudido por causa das medidas que tomou para pesquisar sobre obras de arte roubadas e para as devolver a seus legítimos proprietários.

Mas essa reputação vem sendo erodida nos últimos dez anos, e a organização governamental que trata das reivindicações das vítimas e de seus herdeiros, a Comissão Holandesa de Restituições, atraiu críticas por decisões que muita gente viu como mesquinhas e exemplos de falta de empatia.

Agora, um comitê convocado pelo ministro da Cultura para revisar o histórico da comissão de restituições concluiu, num relatório divulgado recentemente, no qual holandeses caminharam na direção errada.

O relatório evita críticas severas à comissão e, à primeira vista, pode parecer recomendar pouco mais que uma correção administrativa de curso. Mas suas constatações foram provocativas o bastante para que dois dos sete integrantes da comissão, entre os quais o seu presidente, renunciassem imediatamente.

Homem olha muitos quadros de obra de arte
Rijksmuseum em Amsterdã, na Holanda, exibe muitas obras que foram saqueadas pelos nazistas na esperança de encontrar os legítimos proprietários - Rijksmuseum/The New York Times

No centro da controvérsia está uma norma adotada pela Comissão Holandesa de Restituições em 2012 com o objetivo de “balancear os interesses” dos queixosos e os dos museus.

Muitas instituições holandesas abrigam, desde o fim da guerra, obras de arte que foram roubadas pelos nazistas, devolvidas por autoridades internacionais aos países dos quais provinham, sob a premissa de que as obras seriam restituídas aos seus proprietários originais assim que estes fossem identificados.

Mas, depois de considerar “o balanço de interesses”, a Comissão Holandesa de Restituições nos últimos anos vinha negando algumas reivindicações, com a justificativa de que a pintura, escultura ou objeto em questão havia se tornado mais importante para os museus do que para os herdeiros.

O relatório recomenda abandonar o teste de “balanceamento”. O estudo afirma que a Comissão Holandesa de Restituições precisa ter “mais empatia” e “menos formalidades” em sua resposta a reivindicações.

“Se a arte foi roubada e existe um herdeiro, os interesses do museu não deveriam ser levados em conta”, escreveu Jacob Kohnstamm, o advogado que presidiu o comitê encarregado de redigir o relatório, numa entrevista por telefone. “Nosso esforço aqui é o de lutar pela justiça.”

A política que requer “balanceamento de interesses” foi seriamente criticada por especialistas internacionais em restituições, entre os quais Stuart Eizenstat, que assessora o Departamento de Estado americano e foi um dos criadores dos Princípios de Washington, um acordo internacional assinado em 1998 com o objetivo de estabelecer diretrizes para os países no tratamento de obras de arte roubadas durante a Segunda Guerra Mundial.

Num artigo de opinião publicado pelo jornal holandês NRC Handelsblad, dois importantes especialistas internacionais em restituições apelaram por ação da parte do governo holandês. Este havia “destruído as esperanças criadas 20 anos atrás na Conferência de Washington de que a justiça e a equidade prevaleceriam e de que as propriedades roubadas seriam devolvidas aos seus legítimos donos”, eles escreveram.

O comitê de revisão presidido por Kohnstamm dedicou alguns meses a entrevistar queixosos, seus advogados, membros da comissão, dirigentes de museus e especialistas externos em restituições, sobre o sistema holandês de restituições.

O relatório sugere que o governo retome a pesquisa sistemática sobre a história das peças em questão no período da guerra, na esperança de identificar vítimas de roubos pelos nazistas, ou seus herdeiros. Também sugere que as autoridades criem um conjunto claro de diretrizes para explicar como o processo de restituição funciona e que seja criada uma central de assistência para orientar os queixosos durante o processo todo.

Kohnstamm disse que o comitê de revisão descobriu que existiam pelo menos 15 documentos de orientação e cartas ao Parlamento que delineiam as regras holandesas para processar reivindicações de restituição, o que torna extremamente difícil para um cidadão comum compreender de que maneira seu caso deveria ser julgado.

Alfred Hammerstein, antigo presidente da Comissão de Restituições, se recusou a comentar os motivos de sua renúncia.

Os membros remanescentes da comissão afirmaram em comunicado conjunto que recebiam positivamente “as recomendações construtivas do relatório” e que fariam seus “melhores esforços para adaptar as práticas de trabalho da instituição de forma a fazer com que ela pareça menos remota. Isso incluirá intensificar a comunicação com os queixosos e formular recomendações e decisões de maneira ainda mais compreensível”.

Mas Eizenstat, o assessor do Departamento de Estado americano, classifica o relatório sobre o trabalho da comissão como um “indiciamento”.

“Se implementadas, as recomendações avançariam substancialmente na retificação de algumas das preocupações”, declarou ele em entrevista por telefone. “Isso devolveria as políticas holandesas às suas origens, que eram exemplares, inicialmente, mas que terminaram adulteradas.”

Taco Dibbits, diretor do Rijksmuseum, o museu nacional holandês, disse esperar que o governo adote as recomendações. “Não queremos ter em nosso museu coisas que têm um histórico de crimes de guerra e roubos”, disse ele.

Segundo Dibbits, em sua opinião a ideia de balancear interesses sempre será inapropriada. “Se tenho uma bicicleta roubada e a uso para me movimentar, e em dado momento a pessoa de quem a roubei a pede de volta, não é aceitável que eu diga que a uso demais e portanto não posso devolver.”

Por causa de seu apreço por obras da era de ouro da arte holandesa, que eles sentiam representar uma grande tradição germânica, os nazistas roubaram um número imenso de obras de arte da Holanda durante a Segunda Guerra Mundial. Obras foram confiscadas e saqueadas, ou apreendidas sob um manto de falsa legalidade quando marchands judeus foram forçados a intermediar vendas e dispor do conteúdo de suas lojas por preços drasticamente reduzidos, sob ameaça de deportação ou morte.

Depois da guerra, quando as forças aliadas devolveram milhares de obras de arte roubadas à Holanda, o governo do país estabeleceu a Fundação para a Propriedade da Arte Holandesa, que devolveu centenas de itens aos seus proprietários ou herdeiros e leiloou cerca de 4.000 peças, entre as quais 1.700 pinturas.

A instituição considerou seu trabalho concluído em 1951 e fechou as portas. No entanto, milhares de obras de arte ainda não haviam sido devolvidas e foram entregues à Coleção de Propriedade de Arte Holandesa, conhecida como NK. Em 1998, além de assinar os Princípios de Washington, o governo holandês retomou seus esforços para devolver as obras aos proprietários legítimos, criando um Comitê Sobre Arte de Origem Desconhecida que pesquisou ativamente a história das peças e estabeleceu uma nova política para conduzir as restituições.

Mas uma grande restituição de 202 peças da coleção do marchand holandês Jacques Goudstikker, em 2006, incomodou muita gente no governo. Artigos de opinião publicados em jornais do país afirmavam que essas obras eram preciosas demais para o público da Holanda e que não deveria ser permitido que elas deixassem o país.

Gert-Jan van den Bergh, advogado holandês que conduziu diversos casos internacionais de restituição, disse que a restituição da coleção de Goudstikker foi um ponto de inflexão para a atitude das autoridades.

Naquela altura, ele afirmou, “o Estado holandês começou a afirmar propriedade de obras restituídas, enquanto, depois da guerra, os aliados devolveram as obras com a instrução muito clara de que o Estado holandês se considerasse apenas como guardião das peças até que seus legítimos proprietários pudessem ser encontrados”.

A Comissão de Restituições, que iniciou seu trabalho em 2002, julgou 163 casos, envolvendo 1.620 obras de arte, e decidiu devolver 588 peças. Mas os críticos de seu trabalho dizem que o órgão começou a dar peso cada vez maior às preferências do Estado por reter as obras de arte, ante as provas oferecidas pelos queixosos de que as peças haviam sido roubadas.

O Comitê Sobre Arte de Origem Desconhecida encerrou suas atividades e se dissolveu em 2007, e suas pesquisas sobre as coleções de arte estatais foram encerradas, ainda que a Associação Holandesa de Museus exigisse de seus membros que verificassem suas coleções em busca de obras de arte que pudessem ter sido obtidas ilegalmente entre 1933 e 1945.

A Comissão de Restituições estabeleceu um novo critério para lidar com reivindicações, em 2012, conhecido como “padrão de equanimidade e consideração razoável”, cujo objetivo era balancear os interesses dos museus nacionais diante do elo entre o queixoso e a obra de arte em questão.

Em 2013, quando herdeiros de um refugiado judeu alemão solicitaram a restituição do quadro “Cristo e a Mulher Samaritana Diante do Poço”, de Bernardo Strozzi, que é parte do acervo do Museum de Fundatie, a comissão de restituição rejeitou o pedido, dizendo que “reter o quadro é de grande importância para a coleção do museu e para os visitantes do museu”.

Mais recentemente, em 2018, a Comissão Holandesa de Restituições rejeitou um pedido de devolução de um quadro de Wassily Kandinsky, “Pintura com Casas”, que foi vendido por seus proprietários judeus em 1940 quando eles estavam tentando escapar da Holanda depois da invasão alemã.

A comissão questionou se o quadro havia de fato sido vendido sob compulsão criada pelos nazistas, ou se o motivo da venda foram outros problemas financeiros já existentes antes da invasão, e decidiu que “o herdeiro não tem um elo especial com a peça”, e que esta “tem lugar significativo na coleção do Museu Stedelijk”.

James Palmer, fundador da Mondex Corporation, uma empresa de restituição de arte que representou os queixosos no caso do quadro de Kandinsky, disse que a decisão refletia “a organização controlada e desprovida de imparcialidade criada para reter obras de arte e outros artefatos culturais e para ignorar gritantemente as reivindicações das vítimas do Holocausto”.

Van den Bergh foi um dos especialistas entrevistados para o relatório recém-divulgado. Ele disse que a reputação da Holanda, em sua resposta aos pedidos de herdeiros, costumava ser uma das melhores da Europa. “O que aconteceu foi que, no meio do caminho, entramos em uma atmosfera de litígio em lugar de em um processo de busca da verdade”, disse ele.

“Temos que voltar ao processo de busca da verdade, sem nos deixarmos envolver em uma atmosfera litigiosa na qual os museus e o Estado holandês são vistos como oponentes dos queixosos”, disse ele. “Estamos nesse processo juntos, e se trata de um processo de cura de injustiças históricas.”

Tradução de Paulo Migliacci

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