Só cinco mulheres reais são representadas entre os 367 monumentos de São Paulo

Entre as 173 figuras masculinas retratadas, 65% são homens históricos; entre as 45 femininas, a maioria é genérica e divina

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São Paulo

O mito da Medusa envolve, numa das suas versões, um estupro. Nela, Medusa era uma bela sacerdotisa de Atena. Violentada por Poseidon, senhor dos oceanos, é por Atena castigada com um estranho poder —transformar em pedra quem visse o seu rosto, que, a partir do incidente, passa a ser emoldurado por madeixas serpentes.

Não deixa de ser irônico que a Medusa, mãe involuntária das estátuas, tenha se tornado uma controvérsia. Uma escultura em que ela exibe a cabeça do herói que a derrotou gerou protestos em Nova York.

Enquanto alguns enxergaram na obra um símbolo da era MeToo, outros atacaram seu corpo, que virou uma donzela tipo manequim. Uma crítica parecida ecoou em Londres, em relação a uma escultura de Mary Wollstonecraft. “Um nu minúsculo, prateado e sarado realmente era o melhor jeito de honrar a mãe do feminismo?”, perguntou o jornal britânico The Guardian.

Na cidade de São Paulo, há 45 estátuas que representam mulheres, ou cerca de 12% do total de 367 monumentos da cidade, segundo um levantamento feito pela reportagem a partir de uma lista fornecida pelo Departamento de Patrimônio Histórico, o DPH.

Já as estátuas com figuras masculinas são 173, correspondendo a cerca de 47% do total desses monumentos. Vale notar que a análise só levou em conta esculturas, totens, marcos, chafarizes e outros que representavam figurativamente pessoas de um ou de outro gênero. Além disso, os monumentos que trazem tanto figuras femininas quanto masculinas foram contabilizados em ambas as listas.

A maioria dessas estátuas femininas é de mulheres genéricas, muitas da mitologia clássica —Diana, Anfitrite, Aurora, Aretuza e as Graças são algumas das que habitam as ruas de São Paulo. O motivo, afirma Alice Américo, coordenadora do Núcleo de Monumentos e Obras Artísticas do DPH, é que os alunos do Liceu de Artes e Ofícios paulistano treinavam produzindo cópias de esculturas europeias como essas.

Só 6 das 45 estátuas femininas são dedicadas a mulheres que de fato existiram, cerca de 13%. É menos que o número de donzelas nuas —12. Duas dessas homenagens são à mesma pessoa, a tenista Maria Esther Bueno.

As outras mulheres representadas na cidade são a escritora Cora Coralina, a médica Carlota Pereira de Queirós, primeira deputada federal do Brasil, a educadora Carolina Ribeiro, que foi secretária de Educação do estado, e a pianista Antonietta Rudge.

As estátuas que representam homens históricos são 112, ou cerca de 65%. “É como se as mulheres jamais tivessem ocupado qualquer papel importante na história a não ser o de divindade”, diz Giselle Beiguelman, professora da Universidade de São Paulo.

Essa discrepância se repete no mundo —em Londres, por exemplo, só 6% das estátuas de figuras históricas são de mulheres, segundo o projeto Statues for Equality, ou estátuas para a igualdade.

A historiadora da arte Mariana Leme afirma que essas diferenças têm origem no século 19. Foi naquela época que as divisões entre público e privado se consolidaram, o primeiro associado aos homens, um espaço de exercício da cidadania e da política, e o segundo, às mulheres. Não é à toa que elas protagonizam tantas pinturas nos museus de belas artes, diz Leme. “São obras para serem penduradas em casa."

A fórmula parece ter sobrevivido no século 20, quando a maior parte dos monumentos da cidade foi implementada.

Américo, do DPH, afirma que até recentemente esses trabalhos eram ou encomendados pela prefeitura e Câmara Municipal, ou doadas por entidades independentes. Foi só em 2002, com a criação de uma comissão de análise de obras públicas, que os critérios para a implementação dessas obras foram definidos.

A coordenadora afirma que hoje qualquer um pode entrar com um pedido para implementar um monumento, desde que preencha uma série de documentos e cubra os custos de produção.

Poucas obras são aprovadas pela comissão, no entanto. Isso porque a maioria dos pedidos é de bustos e estátuas figurativas, linguagem típica do século 19 que a comissão entende já existir em quantidade suficiente em São Paulo. “A ideia é usar novas técnicas, contemporâneas, e isso é uma grande dificuldade das pessoas que estão propondo.”

É uma preocupação que Leme e Beiguelman compartilham quando se fala nas discussões em torno da Medusa e da escultura de Wollstonecraft, criticadas pelos corpos ideais que mostram.

Montagem/colagem com fotos, na qual uma figura feminina segura a cabeça masculina de uma estátua
Colagem a partir da estátua "Medusa com a Cabeça de Perseu", de Luciano Garbati - Alex Kidd

“Fico me perguntando qual é o sentido de emularmos hoje uma visualidade que é tão típica do século 19, de algo durável, em bronze, com um pedestal. Isso tem uma implicação, não é isento”, diz Leme.

Beiguelman é outra a pôr em xeque movimentos que desejam uma volta ao século 19. “A memória da mulher precisa sim ser historicizada e problematizada no espaço urbano. Mas quais são as estéticas que dão conta disso?”

Um caminho, sugere ela, são os antimonumentos, que invertem a lógica de grandiosidade dessas obras e que ganharam força em trabalhos vinculados à memória do Holocausto. São propostas como as “pedras de tropeçar” do alemão Gunter Demnig, feitas para que os passantes, ao tropeçar na calçada, sejam obrigados a olhar para o chão e ali descubram placas assinalando as casas dos que foram perseguidos por nazistas.

Repensar os problemas dos monumentos que já estão à nossa volta é crucial, segundo Leme. “Isso vai entrando no nosso imaginário de um jeito que não percebemos. Quem pode ocupar o espaço público, quem pode falar?”, ela questiona. “A imagem é imediata. E se as pessoas não sabem que aquilo é uma construção, isso acaba naturalizando essas representações não como o que são, mas como realidade.”

Erramos: o texto foi alterado

O título da reportagem dizia que cinco mulheres são homenageadas nos monumentos. Na verdade são cinco as mulheres representadas, já que há, na cidade, marcos e figuras abstratas que homenageiam mulheres. Entre monumentos com figuras humanas e não figurativos, são dez os que celebram mulheres reais. O título foi corrigido.

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