Steve Martin desbrava com suas tirinhas o que chama de última fronteira da comédia

Sem saber desenhar, ator se juntou ao cartunista Harry Bliss para criar cartuns que vão do surreal ao filosófico

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Nova York

Quase toda madrugada, entre às 2h e às 4h, Steve Martin se vê acordado, com os pensamentos girando fora de controle. Deitado na cama, ele imagina cenários absurdos —uma família de vacas se acomodando à mesa para um jantar elegante; um pato carregando um rifle; um Tarzan decadente anunciando empréstimos imobiliários nada idôneos na TV.

Martin anota as ideias em seu iPhone, e transforma as melhores delas em cartuns.

Martin —humorista, ator, escritor, produtor e músico premiado com o Grammy por suas gravações de bluegrass no banjo— é um dos multiartistas mais bem-sucedidos do mundo do entretenimento. Ele já escreveu ensaios, um livro de memórias, romances, peças, roteiros, monólogos de stand-up, canções, esquetes de humor e contos.

Mas os cartuns, que ele define como “a fronteira final da comédia”, estavam entre as poucas mídias de humor com as quais ele não havia trabalhado, em parte porque falta a ele um talento essencial. “Não sei desenhar”, disse. “Sou um dos poucos artistas que tornam um pedaço de papel menos valioso se eu desenhar nele.”

Como aspirante a cartunista desprovido de talento para o desenho, Martin estava numa situação complicada. Por isso, no ano passado entrou em contato com o ilustrador e cartunista Harry Bliss e perguntou se este não gostaria de trabalhar com ele.

Bliss se interessou. Ao longo dos seis meses seguintes, eles criaram cerca de 200 cartuns, muitos dos quais são parte de sua nova coleção, “A Wealth of Pigeons”, ou uma profusão de pombos, que saiu pela Celadon Books neste mês.

Os desenhos variam em estilo e tom, do absurdo, inútil e fantasioso, em cartuns estrelados por animais falantes e alienígenas entediados, à filosofia e à metalinguagem, com desenhos sobre o processo criativo e a natureza fugaz e subjetiva da comédia.

Um desenho mostra um astronauta fincando uma bandeira em Marte, e pensando “espero que isso não seja aquilo que vai me definir”. Outro mostra uma mulher carrancuda carregando malas para fora de casa, enquanto um monstro do pântano a olha com tristeza e pergunta “qual é o problema, sou idoso demais para você?”.

Em outro cartum, duas toupeiras contemplam uma montanha ao longe, e uma delas diz “tudo começou com um montinho de terra, mas continuei trabalhando”.

As restrições que a mídia impõe interessam a Martin. “O que gosto nela é que é tudo muito rigoroso e muito limpo”, disse. “O cartum ou funciona, ou não.”

Segundo ele, encontrar legendas engraçadas para os cartuns era de algum modo mais complicado que dizer coisas engraçadas diante de uma audiência.

“Você não tem a oportunidade de testar. No palco, você pode testar se uma piada funciona ou não e depois acrescentar alguma coisa a ela; você tem feedback. No desenho, o feedback é virtualmente zero.”

Em entrevista conjunta, via vídeo, Martin e Bliss descreveram sua parceria e o modo como as ideias de um ganhavam força com a colaboração do outro.

“A sensação de sucesso é realmente interessante quando você chega a ela por acaso”, disse Martin. “Eu nem sei bem como descrever, é um estalido repentino que faz você dizer ‘opa, tive uma ideia’.”

“É um momento eureca”, sugeriu Bliss.

“Sim, creio que sim”, disse Martin, com um tom cético. “Mas menos do que isso. Eles encontraram ouro.”

Às vezes Martin envia a Bliss a descrição de uma imagem, com a legenda que tem em mente, e os dois desenvolvem a ideia trocando emails.

“Museu de arte, uma mãe e filho olhando um quadro. Mãe: ‘Meu filho seria capaz de pintar esse quadro’. O menino é um mini-Picasso usando um jaleco de pintor, com uma paleta nas mãos”, escreveu Martin em mensagem a Bliss no começo do ano. “Muitas variáveis, aqui. Eles podem estar olhando para um Rembrandt e o menino é um pequeno Rembrandt, ou para um quadro abstrato e o menino é um pequeno Pollock.”

Bliss levou a ideia adiante. “Pode ser divertido ter uma mãe elegante de Nova York dizendo isso para uma amiga (à esquerda dela), mas segurando a mão de um pequeno Jackson Pollock, com a camiseta preta que ele sempre usava e um cigarro na mão”, respondeu o desenhista.

“Adorei o cigarro”, Martin replicou.

Em outras ocasiões, Bliss manda a Martin um desenho que precisa de legenda. Num desses, um cachorro está escondido atrás de uma árvore, falando em um rádio portátil e organizando um complô para sequestrar um esquilo.

Martin enviou algumas opções a Bliss, entre as quais “texugo falando, câmbio, centopeia”; “caubói falando, câmbio, foguete”; e “roleta falando; câmbio, Yahtzee”. Por fim eles escolheram uma variação –“Blackjack falando; câmbio, Yahtzee”.

Às vezes, quando Bliss não consegue visualizar o que Martin tem exatamente em mente, ele pede um rascunho da cena. Quando Martin teve uma ideia para um cartum que punha em questão o mito de Sísifo, Bliss não conseguiu visualizar; por isso, Martin mandou um desenho simples, com legendas como “meu nome real é Manny”.

Como colaboradores, Martin e Bliss formam uma dupla de opostos. “Ele é um rapaz do campo e eu um rapaz da cidade”, disse Martin.

Bliss, de 56 anos, que publica suas ilustrações e cartuns na revista The New Yorker e em diversos jornais, por meio de uma distribuidora, ama a natureza e vive em Cornish, no estado americano de New Hampshire (na casa em que morou o escritor J.D. Salinger).

No Instagram, Bliss publica imagens de pássaros e árvores e pequenos vídeos que o mostram cortando lenha e usando microdoses de LSD, além de exibindo pequenas amostras de seus trabalhos em progresso.

Martin, de 75 anos, é mais conhecido por seus papéis cômicos em filmes como “O Pai da Noiva” e “O Panaca” e por seu trabalho como comediante de stand-up. Ele também é apaixonado por arte e literatura e publicou diversos livros ao longo de sua carreira, como a autobiografia “Born Standing Up” (nascido de pé, um trocadilho com stand-up), o pequeno romance “A Balconista" e os romances “An Object of Beauty”, ou um objeto de beleza, e “The Pleasure of My Company”, ou o prazer da minha companhia.

“É perceptível o respeito que existe na colaboração deles. Não se trata de Harry desenhando ideias de Steve ou de Steve legendando desenhos de Harry”, disse Françoise Mouly, editora de arte da The New Yorker, que ajudou a pôr Martin em contato com Bliss. “São dois caras tentando fazer com que o outro ria.”

Martin já tinha trabalhado com desenhos no passado, em segredo. Anos atrás, ele foi “ghost writer” de um cartunista, que publicou algumas das criações da dupla na revista The New Yorker. Martin jamais assumiu crédito pelos cartuns e não quis identificar o desenhista, que morreu cinco anos atrás. “Prefiro manter o segredo porque foi um acordo privado entre nós dois”, ele disse.

Martin sentia falta de trabalhar com cartuns e chegou à conclusão de que não tinha grande coisa a perder, a esta altura de sua carreira se o tentasse fazer publicamente como parte de uma dupla.

“No começo, escrever me fazia sentir muito pressionado, e as consequências eram pesadas; agora, tudo mudou muito. Isso é realmente divertido”, disse Martin. “Mais cedo na minha vida, tudo estava sempre em jogo, em qualquer coisa que eu fizesse. Agora ninguém vai dizer que isso não é uma boa ideia.”

Segundo Bliss, que costuma trabalhar sozinho, colaborar com um humorista famoso como Martin inicialmente era uma perspectiva assustadora. Mas Martin o reassegurou, afirmando que sempre seguiria a lógica humorística da mídia em questão.

“Uma das coisas que Steve me disse por email, logo no começo, foi de que capitular para servir melhor ao cartum era algo que ele faria sem deixar o ego interferir”, disse Bliss numa entrevista telefônica posterior. “Dizer a Steve Martin que alguma coisa não funciona é algo que eu tinha dificuldade de aceitar. Não é que a ideia não seja engraçada, na maioria das vezes, mas sim que ela não se traduz bem na forma escolhida.”

“A Wealth of Pigeons” inclui algumas tiras que mostram Martin e Bliss trabalhando. Numa, eles brigam para determinar se um desenho é ou não engraçado, com Bliss dizendo a Martin que “você não é nenhum Charlie Chaplin”, e Martin respondendo “e você não é nenhum Rembrandt”. Noutro desenho, Martin dispara uma série de sugestões que Bliss descarta como derivativas.

Os dois estão trabalhando num segundo livro como colaboradores. Numa tarde chuvosa recente, quando foram juntos de carro para uma entrevista de TV sobre o livro, eles desenvolveram três ou quatro ideias para cartuns no caminho. Uma surgiu da conversa que estavam tendo sobre bicicletas. Martin questionou por que havia demorado tanto tempo para o ser humano inventar a roda.

“Nós dois concordamos que a natureza oferece tantos exemplos de roda que ela deveria ter sido inventada de primeira”, disse Bliss. “Steve disse ‘OK, a legenda deve ser sobre invenção do fogo, e o desenho mostra o pessoal comemorando queimando uma roda de carroça'.”

Bliss enviou um rascunho do cartum ao parceiro alguns dias mais tarde.

Tradução de Paulo Migliacci

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.