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Livros Clarice 100

Tantos gostam de 'A Hora da Estrela' que não pode prestar, disse Clarice

Volume cuidadoso de cartas da escritora mostra a sua solidão e o seu método intuitivo

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Vilma Arêas

Escritora, professora emérita de teoria literária da Unicamp e autora de ‘Um Beijo por Mês’ (Luna Parque)

"Todas as Cartas" é um livro que reúne a correspondência de Clarice Lispector, com prefácio e notas bibliográficas de Teresa Montero, organizadora competente de correspondências anteriores, posfácio de Pedro Karp Vasquez, pesquisa textual e transcrição das cartas por Larissa Vaz.

Trata-se de mais um volume que a Rocco nos entrega, completando a trilogia do epistolário da escritora, iniciada com "Cartas Perto do Coração". Essas últimas foram organizadas por Fernando Sabino e incluídas neste novo volume. Vale a pena ler.

A maioria de "Todas as Cartas" é dirigida às irmãs, com as quais a escritora comenta os próprios sentimentos de solidão e saudades, além da certeza de uma vocação — "Escrever é a coisa que mais desejo no mundo, mesmo mais que amor”.

A essas se juntam cartas aos amigos, bilhetes, mensagens interrompidas, pedidos de publicação etc. Há trechos, infelizmente raros, que retomam o traço meio errante e difuso da ficção clariciana, que ela julga com razão “sem demasiada interferência do raciocínio lógico”.

Essa afirmativa merece um pequeno comentário. Percebo que há um certo mal-estar dos intelectuais com declarações de Clarice quanto a seu método intuitivo, que a fazia muitas vezes estranhar o que escrevia, dizer que não era uma intelectual etc.

Acho que essa característica não a diminui. Afinal, a intuição não se define por trajetórias espirituais nem por olhos com “o brilho baço dos místicos”, como escreveu Olga Borelli em livro de 1981. Sobretudo, não é o oposto da inteligência.

A esse respeito aconselho aos interessados o notável retrato que Otto Lara Resende fez da amiga em "O Príncipe e o Sabiá". Quem a conheceu sabe que são palavras avessas ao desejo ou à tentativa de enquadrá-la.

Além disso, quem pode esquecer as palavras de Machado em sua crítica ao Eça? Às vezes a crítica deve abandonar um livro ao entusiasmo cego, que acabará por matá-lo.

Também não esqueço as palavas de Clarice quando corri ao hospital, em 1977, para dizer-lhe que "A Hora da Estrela", livro recém-publicado, era uma obra-prima. Ela respondeu dizendo que “tanta gente está gostando que não pode prestar”.

"Todas as Cartas" é um volume muito cuidadoso, correto, explicativo. Referências bibliográfias, ou outras quaisquer, interessam e vêm ao pé da página, o que facilita a vida do leitor. Mas é difícil determinar com tranquilidade as pessoas que lerão essas cartas. Quem serão elas?

Imagino que, em primeiro lugar, serão especialistas, professores, ensaistas e pesquisadores (Teresa Montero observa que, de 2005 a 2016, oito dissertações e três livros utilizaram a correspondência). Em segundo lugar, virão os fãs absolutos da ficção de Clarice, isto é, o oposto do que entendemos por “leitores”, e sempre ofendidos com qualquer comentário analítico sobre ela. É pena.

Podemos dizer que Clarice Lispector já possui um epistolário, relativamente raro no Brasil. Com a exceção evidente de Mário de Andrade, cujas cartas, ao lado das respostas da maioria de seus correspondentes, contêm análises, debates, história, política, controvérsias, tudo o que é necessário ao vigor de qualquer literatura. Até hoje elas nos ensinam e nos surpreendem.

Não podemos comparar as cartas de Clarice com as de nosso modernista. Se algo as aproxima é sua correspondência com Fernando Sabino, as únicas mensagens de franca discussão literária, principalmente da parte de Sabino. Acho que a dispersão dessas páginas no corpo de "Todas as Cartas" cortou a força da correspondência dos dois escritores, problema que os organizadores também sentiram.

Em seu posfácio, Pedro Karp Vasquez explica os cortes das “sugestões”, aliás franquíssimas, de Sabino, porque fugiam ao propósito do livro. É compreensível, mas também é uma pena.

Espero que essa falta não impeça a leitura de "Todas as Cartas", por muitos motivos dignas da atenção, dos antigos e novos leitores de Clarice.

Todas as Cartas

  • Preço R$ 119,90 (864 págs.) ou R$ 59,90 (e-book)
  • Autoria Clarice Lispector
  • Editora Rocco
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