"A Noiva do Tradutor" é a novela de um leitor que travou com alguns livros uma relação intensa o suficiente para transformar a leitura numa forma de escrita.
É também uma reflexão indireta sobre como a narrativa do século 20 pode ainda servir de embocadura à literatura contemporânea. O seu autor, João Reis, é português, tradutor e por algum tempo foi também editor de literatura nórdica.
O livro estabelece com a literatura da primeira metade do século 20, e especialmente com "Fome", de Knut Hamsun, uma relação mais produtiva e talvez mais vertiginosa que a da mera influência. É um texto que dá de ombros à busca por atualidade que vem impulsionando boa parte da ficção contemporânea.
O resultado é curioso, porque rende um livro antiquadamente moderno ou modernamente antigo. Mesmo sem alcançar a visceralidade da escrita de Hamsun, consegue explorar bem as filigranas da frustração e o travo amargo dos dias de um tradutor, presumivelmente português, vivendo em algum ponto entre a Primeira Guerra e a Segunda Guerra, numa cidade que pode ser Lisboa.
Reis nos põe imediatamente dentro do labirinto mental de seu narrador, elétrico no momento em que o retorna à pensão, triste, em meio à chuva persistente que o irrita. Descreve a si mesmo como um cachorro babão, pensa no mundo de conforto e luxo em que as mulheres não estariam tão expostas aos ímpetos de homens nojentos como ele.
As pessoas ao seu redor surgem grotescas, repulsivas, "vivemos rodeados de bestialidade”, assevera o tradutor. Os editores para quem trabalha são descritos em toda a sua presunção e falta de escrúpulos, um como ratazana sovina, o outro, caloteiro, como um suíno, imbecil e vaidoso.
Todas as mulheres são repugnantes ou recrimináveis na visão dele, exceto a que ama, Helena, a noiva recém-partida num navio com destino que não fica claro, fonte de saudade e de tormento, junto com a fome, o frio, a mediocridade geral e aquela, mais específica, dos livros ruins que se vê forçado a traduzir.
O romance, desde seu surgimento, foi o gênero que mais se deixou fertilizar pelos problemas da sociedade. A burguesia frígida, alienada ou cínica, bem como a dor e a revolta dos excluídos, são temas recorrentes nos romances do século passado.
A literatura moderna está repleta de homens como esse tradutor, vagando sem nome, mas cheios de aflições, arrogantes e humilhados, soberbos e pobres, vivendo em pensões sujas, sem classe social muito bem determinada.
Esse tradutor é também o rebaixado funcionário da palavra escrita, subsumido ao poder de outros, como Bartleby, o escrivão. Mas, distante da resistência passiva com que Melville o arma, o personagem de Reis dispõe de uma cólera orgulhosa, expressa no escárnio com que descreve para si mesmo as pessoas que detesta.
O tradutor aí é uma figura socialmente marginal, um desclassificado; seu ofício vale pouco ou nada, seu cotidiano é um enfrentamento constante da precariedade material e com a ignorância e ganância das pessoas ao seu redor.
Mas ele é desclassificado em sentido ainda mais fundamental, pois é difícil o remeter a uma classe social bem delineada. Isso permite a ele transitar entre ambientes bastante diversos, atuando como observador privilegiado e crítico tanto dos que se encontram acima quanto abaixo dele na hierarquia social.
A certa altura, o tradutor amaldiçoa o seu país, onde "uns são intelectuais demais, os outros, analfabetos, não há meio-termo”. Ali ele se asfixia.
É bastante tentador encarar o livro como uma versão portuguesa do romance moderno nórdico. "A Noiva do Tradutor" nasce do encontro entre duas Europas excêntricas, em que sensibilidades extremas, uma escandinava e a outra ibérica, são trabalhadas em sua dimensão periférica, presumida e provinciana.
A Noruega descrita por Hamsun tem pouco do país escandinavo rico dos dias de hoje, assim como a cidade portuguesa onde deambula o tradutor de Reis não tem muito da Lisboa gentrificada de agora. Só o ofício do tradutor é que parece continuar menos valorizado do que deveria.
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