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Autobiografia de Woody Allen prova que ele só enxerga sexo nas mulheres

Descrição erotizante de atrizes ofusca passagens de bom livro de um dos maiores cineastas da história

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O cineasta Woody Allen, em retrato de 2002

O cineasta Woody Allen, em retrato de 2002 Ludovic Careme/Corbis

Flávia Boggio

"Que furada, amiga." Foi o primeiro comentário que recebi quando comentei, num grupo de mulheres roteiristas, que iria escrever a resenha da mais recente autobiografia de Woody Allen.

Se fosse uns 15 anos atrás, talvez esse espaço estivesse preenchido com reverências e elogios. Para essa resenhista que aqui escreve, antes de tudo roteirista de humor, Woody Allen já teve um espaço reservado na lista de grandes mestres da comédia.

Mas os tempos mudaram, felizmente. O feminismo virou palavra de ordem e, impulsionadas pelo movimento MeToo, as mulheres mostraram que não toleram mais qualquer forma de abuso.

Talvez, por isso, minha colega tenha falado como se eu anunciasse que iria a uma micareta clandestina em plena pandemia. Como respeito às regras de isolamento, mais seguro fazer a resenha de "Woody Allen: Uma Autobiografia". Mesmo que tenha de pisar em ovos na temperatura de brasas.

Uma coisa não se pode negar: Allen é um escritor brilhante. Isso já foi mais do que comprovado em outros livros e na sua cinebiografia, que tem como maior trunfo o roteiro. Não é por menos. Como conta no livro, a escrita foi seu primeiro ofício, ainda adolescente, quando escrevia piadas para um jornal local.

O humor típico do cineasta está presente em toda a obra. O texto rápido, com comparações espirituosas, beirando a neurose, lembram os melhores diálogos de seus filmes. Principalmente no primeiro terço, quando fala da infância no Brooklyn, em Nova York.

As lembranças da família numerosa e barulhenta, as confusões do pai viciado em apostas soam como uma continuação de "A Era do Rádio", um dos seus mais doces filmes. Ler suas histórias é como passar uma tarde fria embaixo de um cobertor, tomando uma bebida quente.

O autor também faz declarações surpreendentes. Diferente do que imaginávamos, na escola, era um garoto popular e apaixonado por esportes. Como se tornou "nervoso, medroso, um caco emocional, mantendo a compostura por um fio, um misantropo" ele não sabe explicar, mesmo depois de anos de psicanálise.

Também se surpreende com sua fama de intelectual, "uma concepção tão tola quanto o monstro do lago Ness". Ele atribui essa fama aos óculos de aros pretos, combinados a uma "propensão de citar fontes eruditas demais para que eu as entenda".

Woody Allen continua ótimo ao falar de suas neuroses. Descreve uma peculiar fobia "de entrar" em qualquer lugar, que o levou a fugir de um evento importante pela janela. No meio do caminho, lembrou que poderia ser baleado pelo forte de esquema de segurança. Acabou ficando preso no parapeito, tomado pelo medo.

Outro ponto alto são as histórias deliciosas do auge da carreira como cineasta, quando trabalhou com nomes como Mel Brooks, Peter Sellers, Anjelica Huston, Diane Keaton e Gene Wilder. Acompanhar sua trajetória é um pouco a história do cinema americano do século 20.

Entretanto, assim como sua inseparável máquina de escrever Olympia portátil, Woody Allen também ficou parado naquela época, principalmente quando se refere às mulheres.

Logo na dedicatória, escreve "para Soon-Yi, a melhor; ela comia na minha mão, então me dei conta de que tinha perdido o braço". Não é a melhor homenagem, se levarmos em conta o contexto, a época ou qualquer outro quesito.

Ao longo do livro, o autor não consegue citar uma mulher sem a descrever fisicamente. Carla Bruni era "um deleite fascinante". Scarlett Johansson era "sexualmente radioativa", ainda mais ao lado de Penélope Cruz, que "elevou ao cubo a valência erótica de cada uma".

Ou quando gasta páginas para contar como sua mãe não era fisicamente atraente. "Quando disse que minha mãe se parecia com Groucho Marx eu não estava brincando." Seria engraçado, mas é difícil manter o senso de humor levando em conta o histórico de polêmicas do autor.

Também faz um mea-culpa ao confessar sua total insensibilidade com mulheres, responsável pelo fim de quase todos os seus casamentos.

Para quem espera a versão sobre os fatos que quase arruinaram sua carreira, Allen dedica uma boa parte do livro para se defender.

Acusa Mia Farrow de ser mentalmente instável e adotar crianças "como se comprasse um brinquedo novo". Conta que a acusação de ter abusado sexualmente de sua filha, Dylan, aos 7 anos, foi um plano de vingança "pior do que me matar".

Embora o caso não tenha ido adiante, não foi o suficiente para editoras nos Estados Unidos se recusaram a publicar a autobiografia. “Dispensaram o livro como se fosse um bloco radioativo de xenônio-135”, desabafa no posfácio.

Sobre a política de sempre acreditar nas mulheres, ele rebate: "Diga isso aos garotos de Scottsboro", referindo-se aos nove adolescentes negros acusados de estupro no Alabama, em 1931. Mais uma analogia errada.

O que impressiona é que, mesmo após todas as acusações, Allen não deixou de fazer filmes. Alguns os melhores de sua carreira. O segredo é não ler os noticiários e viver em uma bolha. “Melhor do que viver nos corações e nas mentes do público é viver no meu apartamento”. Lição de desapego. Uma das muitas do livro.

Não pretendo usar esse espaço para fazer um veredicto moral sobre as acusações. Ele já foi dado quando boicotaram a publicação da biografia. Ou quando a Amazon cancelou seu contrato. Mas não concordo que a obra do cineasta seja apagada da história. Se seguirmos assim, teremos que queimar a Guernica e esvaziar o Louvre.

Quanto ao livro, embora seja um Woody Allen, ainda é um Woody Allen. Estamos falando de um dos cineastas mais importantes do século 20. Mas, como muitos daquela época, ele ficou parado por lá.

Woody Allen: Uma Autobiografia

  • Preço R$ 49,90 (328 págs.)
  • Autoria Woody Allen
  • Editora Globo Livros
  • Tradução Santiago Nazarian
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