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Berlim gasta R$ 4,5 bi para reconstruir museu que apaga a sua história

Reerguer um palácio imperial é no mínimo insensível num momento em que outras instituições debatem descolonização

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Edwin Heathcote
Financial Times

Por que reconstruir um palácio quando o país não tem imperador? A questão da redundância imperial está no cerne da estranha reconstrução do Stadtschloss de Berlim, o vasto palácio que um dia serviu de centro à vida da cidade.

O novo velho palácio passou por uma longa e dispendiosa reconstrução e agora está pronto para ser aberto ao público, quando as restrições causadas pela Covid-19 forem suspensas –uma abertura parcial marcada para o dia 17 de dezembro teve de ser adiada.

Mas uma construção que combina canhestramente o barroco prussiano e o severo racionalismo contemporâneo a vestígios de arquitetura fascista representa uma declaração curiosa num país que, tendo chegado a um compromisso com sua história, se vê como moderno, industrial, tecnocrático e cosmopolita.

O palácio reconstruído será sede do Fórum Humboldt, uma nova instituição que incorpora os acervos de dois velhos museus, o Museu Etnológico de Berlim e o Museu de Arte Asiática, bem como um novo espaço de exposição dedicado à história da cidade e extensas instalações educacionais.

Ao custo de € 663 milhões, o edifício é um dos mais dispendiosos projetos culturais europeus numa era na qual edificações caras para fins culturais parecem ter saído de moda. Caminhar pelo novo Stadtschloss causa a sensação de que a edificação existe mais por si do que pelo seu conteúdo.

O problema aqui é de ausência –a ausência de um propósito claro, de um imperador, e do edifício que essa pilha reimaginada de concreto revestido de pedra substitui, o Palast der Republik.

A edificação, que servia de peça central a Berlim Oriental e à República Democrática da Alemanha, a Alemanha Oriental, era símbolo de um outro vácuo, a ausência de democracia. Era uma combinação entre um Legislativo sem poderes reais e um centro de lazer, servindo como um mostruário em mármore e vidro cor de bronze para as maravilhas do socialismo, destinado a impressionar tanto os cidadãos locais quanto o Ocidente.

O Stadtschloss original, cuja construção começou no século 15 e que posteriormente foi imensamente expandido por Frederico 3º (mais tarde o rei Frederico 1º da Prússia) e pelo arquiteto e escultor Andreas Schlüter, a partir de 1699, ficou em ruínas ao final da Segunda Guerra Mundial e terminou demolido em 1950. Isso deixou um grande vazio no coração da cidade, inicialmente convertido na soturna Marx-Engels Platz, um local de desfile para soldados e tanques de guerra.

Num esforço para criar uma imagem de progresso, o Palast der Republik foi inaugurado em 1976. Com sua mistura de usos formais e informais e suas superfícies recobertas de vidro colorido, o Palast que substituiu o palácio era uma edificação estranha –comparável, talvez, ao Festival Hall de Londres, em termos de status, e a um complexo de escritórios suburbano no Texas, por sua estética.

Além do Legislativo impotente, conhecido como Volkskammer, o complexo abrigava dois auditórios, um teatro, mais de uma dúzia de cafés e restaurantes, uma pista de boliche e uma discoteca. Era um dos poucos lugares da cidade em que os cidadãos podiam comprar uma xícara de café decente ou encontrar um telefone público que funcionasse.

O Palast passou a fazer parte da vida cotidiana dos moradores de Berlim Oriental, que compareciam a eventos oficiais, cerimônias de formatura, ou a encontros informais com amigos realizados lá. Mas jamais ficou claro que o edifício fosse amado. Bem, pelo menos não até que surgisse a proposta de sua demolição, em 2003.

A desculpa oficial para aplainar o edifício era a presença de fibra de amianto, ainda que muitos outros edifícios construídos na mesma era — fascinada pelo uso desse material como proteção contra incêndios — tenham sobrevivido, sido adaptados, e pareçam funcionar bem.

Os berlinenses orientais consideravam que a demolição fosse parte de um processo de ocidentalização, e não de reunificação. O objetivo parecia ser eliminar todos traços de um regime que havia dado forma a tantas vidas. A despeito de suas objeções, o edifício foi demolido em 2006, sem que existissem planos claros sobre o que o substituiria.

A ideia de reconstruir o Stadtschloss foi promovida pelo empreendedor Wilhelm von Boddien, que montou uma campanha espantosamente bem sucedida. Doadores privados contribuíram com € 80 milhões para os custos da obra, e o governo municipal concordou com a reconstrução.

Boa parte das estátuas originais de Schlüter haviam sobrevivido, em diversos museus e pátios, e elas foram restauradas às suas posições, enquanto o restante do edifício foi reconstruído com base nas plantas originais e em fotos.

As novas pedras do revestimento foram cortadas por máquinas, com base em desenhos digitais, e a precisão do trabalho gera uma aparência um tanto gélida –ainda que o contraste com os fragmentos erodidos das estátuas originais, desgastadas pelo tempo, exponha claramente o artifício.

Se a fachada reconstruída impressiona pelos detalhes, o saguão de entrada é chocho –uma caixa branca desprovida de ornamentos exceto algumas poucas das esculturas mais frágeis de Schlüter, um par de anjos suspensos acima do portão de entrada que parece ter vindo de uma sede de empresa provinciana.

Há outras estátuas originais sobre pedestais, e suas superfícies revelam traços da história, do clima e da guerra. Um olhar generoso poderia ver nelas traços de “Asas do Desejo”, de Wim Wenders.

Mas o pátio oferece um nível diferente. O centro cerimonial do pátio é uma vista inegavelmente impressionante, com alguns fragmentos da pedra original que contêm tanto traços de pichações (russas?) quanto informações da época em que o material foi armazenado.

Um novo pátio externo, parecido com o dos Uffizi, em Florença, parece intrigantemente atenuado, introduzindo uma linguagem arquitetônica híbrida entre o clássico e o corporativo.

O átrio deveria servir como âncora para a nova instituição, funcionando como foro público e espaço para performances e recepção. É lá que você ganha consciência sobre o trabalho de Franco Stella, o arquiteto que venceu o concurso para reconstruir o palácio.

Stella é seguidor da escola racionalista italiana, a versão local do modernismo adotada com grande entusiasmo por Mussolini e ressuscitada em veia pós-moderna na década de 1980, por arquitetos como Aldo Rossi e Vittorio Gregotti.

Severo, e às vezes brilhantemente inventivo, o estilo continua a ser influente. Mas é questionável que funcione aqui. Como moldura restritiva para a teatralidade barroca, ele talvez se justifique. Mas os pesados vestígios de fascismo, num palácio imperial reconstruído no centro de Berlim, são perturbadores.

Não só no átrio, mas na fachada diante do rio Spree. A arquitetura do Stadtschloss tenta, creio, criar um classicismo neutralizado, desprovido de detalhes mas não de associações históricas. No entanto, o efeito é enregelante, uma fria resposta do século 21 aos edifícios de inspiração grega e enegrecidos pela fuligem que ocupam a Ilha dos Museus, ao lado.

Do lado de dentro, o Fórum Humboldt é imenso, com 42 mil metros quadrados. Fui informado de que ele abriga mais espaço para exposições do que a Ilha dos Museus inteira.

As mostras que ocuparão o espaço ainda estavam sendo montadas quando visitei, e seria desleal julgar, exceto ao afirmar que elas estão sendo preparadas de forma que as adapte à grade da fachada reconstruída, o que resulta em algumas contorções espaciais curiosas – andares removidos, mezaninos intrusivos e assim por diante.

As exposições mesmas já geraram controvérsias, entre as quais uma disputa sobre a exibição de esculturas em bronze do Benim, adquiridas dos britânicos. Quando a descolonização de instituições está no ar, a reconstrução do palácio imperial do Kaiser Wilhelm, com um crucifixo no topo, parece, na melhor das hipóteses, uma demonstração de insensibilidade.

Dentro do palácio, a sensação é de que ele é grande e grandioso demais para o que contém, uma coleção de coleções aparentemente aleatória. Com certeza a instituição encontrará seu lugar no tecido cultural e físico da cidade, mas continuará a haver questões sobre se era disso que Berlim precisava.

A capital alemã se provou muito competente em adaptar estruturas existentes a novos usos, mas às vezes há um toque de cegueira, quando isso envolve o legado do comunismo.

O Palast der Republik era um museu, realizando o sonho modernista de criar uma sala de visitas urbana para a cultura e comunicação. Teria sido mais interessante ver o que os arquitetos teriam sido capazes de fazer com aquilo do que com o edifício novinho e reimaginado.

Ambas as edificações são, de certa forma, fachadas falsas. O Palast der Republik apresentava uma imagem de democracia na República Democrática Alemã. O Stadtschloss recentemente reconstruído prefere fingir que aquela era jamais aconteceu.

Ambos giram em torno de impor uma identidade política à cidade, e ambos buscam obliterar o que veio antes de maneiras igualmente implacáveis. Agora, o palácio ocupa o exato centro de Berlim. Mas é um centro morto.

Tradução de Paulo Migliacci

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