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Entenda por que Trump demoniza o estilo brutalista, símbolo do modernismo

Presidente criou decreto exigindo que prédios federais sejam clássicos, em ataque à arquitetura marcada pelo concreto

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Prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo

Prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo Carolina Daffara/Folhapress

Edwin Heathcote
Financial Times

É possível que Donald Trump agora se veja eternamente associado à arquitetura clássica, ainda que não de uma maneira que ele desejasse. A imagem de arruaceiros invadindo a sede do Congresso em Washington, este mês, tirando selfies e roubando objetos, será a indelével memória final de sua tempestuosa presidência.

Mas um de seus últimos atos no cargo foi promulgar uma ordem executiva de que novos edifícios federais devem ser construídos em estilo clássico. O que eles não devem fazer, a ordem especifica, é seguir o brutalismo. Eis como o estilo foi definido —“Brutalismo significa o estilo de arquitetura desenvolvido no movimento modernista do começo do século 20, caracterizado por uma aparência maciça, de bloco, com um estilo geométrico rígido e uso em larga escala de concreto aparente”.

Para um grande construtor, Trump parece ter compreendido erroneamente o momento. O brutalismo saiu de moda como forma de construção há cerca de 40 anos. Nenhum edifício público nos Estados Unidos corre o risco de ser construído em estilo brutalista. Talvez ele estivesse pensando no J. Edgar Hoover Building, a sede do FBI, a um quarteirão de distância do Trump International Hotel. O edifício achatado de concreto foi sempre impopular.

O brutalismo não só deixou de ser um estilo aplicável como centenas das melhores edificações nesse estilo correm o risco de serem perdidas para sempre, por negligência, ignorância e preguiça. Muitas já foram demolidas ou estão ameaçadas. A ordem executiva de Trump confirma (pelo menos temporariamente) o preconceito contra o momento mais criticado da arquitetura modernista, cujo objetivo era conciliar o monumental e a modernidade.

Os conjuntos habitacionais e as bibliotecas, sedes de prefeituras e teatros, estacionamentos e edifícios de apartamentos que foram fruto dessa explosão de concreto estão sendo perdidos em ritmo alarmante, nos Estados Unidos e em outros países.

No entanto, em meio a essa visceral destruição e perda, o brutalismo vem despertando uma retomada de interesse, em outras mídias. Surgiu uma enxurrada de livros, toalhas de mesa, canecas, mapas e maquetes, produzidos como presentes para os devotos do brutalismo, bem como uma cascata de imagens na mídia social exibindo blocos de escritórios, soturnos hotéis da era soviética e notáveis memoriais de guerra iugoslavos, monumentos nunca amados, e em muitos casos agora decrépitos, ao modernismo tardio.

A palavra “brutalismo” recentemente se tornou sinônimo de quase toda a arquitetura modernista, pelo menos para qualquer coisa produzida em concreto, mas as primeiras casas descritas como brutalistas nada tinham em comum com aquilo que a descrição veio a significar.

A Villa Göth, em Uppsala, Suécia, projetada por Bengt Edman e Lennart Holm em 1949, é uma casa de tijolos de aparência amistosa, com uma varanda e sacadas de madeira pintadas de branco.

A Sugden House, em Watford, Inglaterra, projetada por Alison e Peter Smithson cinco anos mais tarde, tampouco tem uma aparência ameaçadora: uma caixa de tijolos com um telhado inclinado – e vigas de madeira sustentando o teto. Imagino que a maioria das pessoas teria dificuldade para distingui-la das casas chochas de tijolos da década de 1960 que ocupam os subúrbios de todas as cidades do Reino Unido.

Foi o crítico, acadêmico e desavergonhado especialista em autopromoção Reyner Banham (1922-1988) que estimulou o uso do termo em um sentido que veio a associar a palavra brutalismo aos blocos de concreto com os quais agora estamos acostumados.

Influenciado pelos projetos do arquiteto suíço Le Corbusier e misturado aos restos dos bunkers alemães destruídos na era da guerra, o brutalismo (derivado do termo francês “béton brut”, concreto bruto) se tornou uma arquitetura do reino público, edificações para o povo.

Seus marcos mais duradouros, como o Southbank Centre em Londres – projetado no final da década de 1960 pelos arquitetos do Greater London Council, um departamento público que na época era o maior escritório de arquitetura do planeta –, o Barbican, e o Whitney Museum de Nova York (projetado por Marcel Breuer) tinham quase que a aparência de fortalezas, cidadelas da cultura e da habitação construídas para resistir à cidade, mas também desejosas de renová-la.

Havia teatros, igrejas escolas, centros culturais, edifícios públicos e, acima de tudo, conjuntos habitacionais brutalistas. Todos foram projetados para conferir dignidade, solidez e presença urbana a uma classe trabalhadora cuja nível de educação e de renda estava subitamente crescendo.

O estilo não perdurou. Quando o brutalismo estava chegando ao seu apogeu, no final da década de 1960 e na década seguinte, já começou a ser desdenhado como monstruosamente desumano, fora de escala, feio e perigoso —ainda que a maior parte dessas objeções tivesse mais a ver com problemas de manutenção e com políticas mal concebidas do que com questões de design.

Pela metade da década de 1980, o brutalismo tinha ficado para trás e, ainda que alguns arquitetos se referissem a ele com admiração passageira, o estilo jamais retornou. E no entanto lá estava Trump, nos dias finais de sua presidência, tentando impedir a construção de novos edifícios brutalistas.

O nome é tão expressivo, ao que parece, que se tornou uma cifra para tudo aquilo de que uma audiência populista pode não gostar. O brutalismo é, como já era há décadas, um alvo fácil, ainda que envolto em concreto reforçado.

O presidente dos Estados Unidos sabe que não existem muitos fãs do brutalismo em sua base política. Na ordem executiva que assinou, ele diz que, antes de selecionar um escritório de arquitetura ou um estilo de projeto para um novo edifício, a Administração de Serviços Gerais (GSA, na sigla em inglês) deve buscar a participação dos futuros usuários do edifício e do “público geral”, que a ordem define como “membros do público que não sejam: artistas, arquitetos, engenheiros, críticos de arte e arquitetura, professores de arte e arquitetura”.

Existe muito de verdade no gracejo que circula há muito tempo e afirma que os mais ruidosos defensores do brutalismo —e muitos dos moradores dos mais famosos imóveis brutalistas de Londres, entre os quais o Barbican e Keeling House— são arquitetos.

Nos últimos anos, muitos dos melhores exemplos da arquitetura brutalista já foram demolidos, do Tricorn Centre de Portsmouth, uma imensa massa de concreto escultural, ao zigurate invertido da Biblioteca Central de Birmingham.

Havia o belo Prentice Women’s Hospital, de Bertand Goldberg, em Chicago, uma coleção de cilindros de concreto sobre uma base implausivelmente delgada; o Shoreline Apartments, de Buffalo, projeto de Paul Rudolph; e o Mechanic Theatre de Baltimore, de John Johansen, que parecia ter uma casca dura como a de um tatu. Centenas de outras edificações desse estilo estão sob ameaça ou deterioradas e em risco, em todo o planeta.

Muito já foi escrito, do ponto de vista social e do arquitetônico, sobre a perda de complexos de habitação social historicamente significativos como o Robin HoodGardens, de Alison e Peter Smithson, na zona leste de Londres, ou o Thameshead (usado como locação no filme “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick, na época em que tinha acabado de ser inaugurado). Mas não se fala tanto assim em obras brutalistas que são propriedade privada.

Dois anos atrás, a caminho do aeroporto em Roma, perguntei ao taxista se ele podia fazer um curto desvio para que eu pudesse apreciar a espantosa Casa Sperimentale, em Fregene. Do final da década de 1960 à metade dos anos 70, o arquiteto Giuseppe Perugini e sua família experimentaram com ideias de moradia como uma espécie de playground de aventuras. As ruínas fascinantes do projeto, com sua estrutura de aço pintada de vermelho e esferas de concreto, hoje recobertas de pichações, parecem ocupar um território desconfortável entre o passado e o futuro.

Outra edificação deteriorada e que oferece muita atmosfera é o St. Peter’s Seminary, em Cardross, Escócia. Havia planos de transformar esse brilhante projeto do escritório Gillespie, Kidd e Coia, um grupo brutalista de arquitetos de Glasgow, em um centro de arte, mas a ideia foi abandonada, o que resultou em uma das mais carismáticas ruínas do Reino Unido.

Outra obra-prima escocesa tragicamente negligenciada é o estúdio do designer têxtil Bernat Klein em Galashiels. Projetado pelo brilhante, e subestimado Peter Womersley, o estúdio recebeu destaque recentemente em “The See-Through House”, livro de memórias de Shelley Klein sobre uma infância passada na casa vizinha (também projetada por Womersley).

Embora o brutalismo tenha certamente começado no norte e oeste da Europa, foi na Europa Oriental que o movimento realmente decolou. Muitos dos mais inventivos e ambiciosos complexos brutalistas foram concebidos na antiga União Soviética e em seus países-satélites, e, depois do colapso do bloco, sua estreita associação com o velho regime fez com que centenas de construções notáveis fossem abandonadas ou negligenciadas.

Os monumentos brutalistas iugoslavos em ruínas conhecidos como “spomenik”, ou memoriais de guerra, se tornaram uma imagem muito compartilhada nas mídias sociais, mas existe muito mais a ver. Um exemplo é o resort sindical de Bankya, na Bulgária. Planejado na metade dos anos 70, o líder comunista búlgaro Todor Zhivkov simpatizou com o edifício e o requisitou como moradia. Depois da mudança do regime, o lugar se tornou um hotel e, supostamente, um bordel. Projetado por Pavel Nikolov, é um conjunto espantoso, com fachadas perfuradas, relevos esculturais em estilo op-art e sacadas onduladas.

A Casa dos Escritores, projetada por Gevorg Kochar em 1969, em uma extensão de um hotel que ele tinha projetado anteriormente (no intervalo entre os dois projetos, o arquiteto foi exilado para a Sibéria), pende precariamente sobre o lago Sevan, na Armênia, com uma estrutura em cantiléver, e é outra maravilha negligenciada, ruindo aos poucos.

O que começou na Europa pode ter atingido seu zênite no Brasil. O brutalismo jamais desapareceu de todo em São Paulo, e ainda influencia a arquitetura contemporânea da cidade. O arquiteto Paulo Mendes da Rocha me disse cerca vez que isso acontece porque, como país “pós-colonial”, o Brasil está “condenado a ser moderno”.

Em 1966, ele projetou um par de casas em São Paulo, para ele e sua irmã, que ilustram perfeitamente a ideia de que uma casa é um espaço público, um microcosmo de uma cidade. Espaços abertos e fluidos são enquadrados por poderosas membranas de concreto, e até mesmo as superfícies de trabalho e mesas são moldadas com o material.

Seu contemporâneo, amigo e colega de comunismo Villanova Artigas criou alguns dos melhores edifícios da era moderna, entre as quais a escola de arquitetura FAU-USP (1969), um dos poucos edifícios do movimento que me comoveram, um soco no estômago de brilhantismo arquitetônico, em um espaço aberto, expansivo e inspirador. Pessoas que estudaram lá me disseram que a escola era fria e nada prática, embora o edifício continue a ser amado – o que representa uma boa metáfora para o brutalismo em si.

“Brutal North”, o novo livro do fotógrafo Simon Phipps, registra a situação das edificações brutalistas no norte da Inglaterra, em severas imagens em branco e preto, e o notável sucesso dos mapas brutalistas da editora Blue Crow parece apontar para um futuro no qual essa modalidade de arquitetura sempre muito criticada encontrará nova apreciação.

Uma exposição aberta em outubro, destacando os brilhantes e comoventes projetos de casas do brutalista belga Juliaan Lampens, do Instituto Vlaams de Arquitetura, pode despertar mais interesse sobre um dos protagonistas menos conhecidos da arquitetura nesse estilo.

Mas continuamos a descuidar de edifícios brilhantes que poderiam ter um ótimo futuro, com novas ameaças a cada semana. Entre as edificações ameaçadas de demolição no momento estão a Assembly Rooms, em Derby, uma séria construção urbana de concreto e tijolos; a Dunelm House, em Durham, uma elegante cascata de concreto com uma ponte esguia sobre o rio Wear; a brilhantemente excêntrica embaixada do Kuwait em Tóquio, de Kenzo Tange; e o inventivo edifício Sirius, de Tao Gofer, em Sydney.

O brutalismo demonstrou capacidade de representar coisas radicalmente diferentes em lugares diferentes – e muitas vezes, coisas radicalmente diferentes para pessoas diferentes em um mesmo lugar. Nós aparentemente reencontramos o respeito (se não o afeto) pelo peso e pelo compromisso da arquitetura brutalista para com a criação de um futuro compartilhado melhor e mais público, criado por meio de construções.

No Reino Unido, o estilo pode representar o sonho perdido de moradia mais generosa para todos, e o compromisso com a cultura, enquanto em São Paulo ou Abidjan ele pode representar confiança pós-colonial. Na Europa Oriental, ele pode evocar nostalgia ou despertar inquietação.

A condenação de Trump talvez leve algumas pessoas a reavaliar o estilo —afinal, nada que ele odeie pode ser de todo mau. Mas o brutalismo sempre teve a capacidade de portar significado em sua forma— às vezes, ironicamente, em seus momentos de maior negligência e deterioração, como uma ruína encharcada pela chuva do sonho de um mundo modernista que jamais se concretizou.

E uma arquitetura que cria espaços carismáticos e deixa belos restos, às vezes insuportavelmente feios, às vezes chocantes, às vezes sublimes, mas sempre interessantes.

Tradução de Paulo Migliacci

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