Entenda por que um sucesso da música pop hoje pode depender de até 30 autores

Hits americanos trazem em média cinco compositores, uma mudança ligada a questões conceituais e econômicas

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Obra do artista albanês Anri Sala

Obra do artista albanês Anri Sala Reprodução

São Paulo

Travis Scott fez "Sicko Mode", hit de proporções mundiais em parceria com Drake, há três anos. A faixa tem um desempenho impressionante no streaming —foi tocada 1,3 bilhão de vezes só no Spotify—, mas também chama a atenção por outro número, o de 30 compositores creditados como autores da faixa.

De fato, o método “artista-curador” de Scott, que em estúdio funciona como uma espécie de catalisador de ideias, puxa a média para cima, mas nos últimos dez anos só 4% das músicas que figuram entre as 50 mais tocadas têm só um compositor.

Os números foram divulgados por uma pesquisa da revista Rolling Stone, que informa também que a média de compositores para se fazer um hit nos Estados Unidos é de cinco pessoas.

“Os times de composição são comuns há bastante tempo”, diz o DJ e produtor Zegon, integrante do Tropkillaz, que já assinou hits de Anitta e trabalhou em discos clássicos de Racionais e Sabotage, entre outros. “No Brasil, sempre foi comum usar compositores, mas times de produção, parcerias entre produtores, letristas, músicos e beatmakers são coisas recentes.”

Por aqui, a onda dos times de composição é mais tímida. Mas uma pesquisa do Ecad, escritório de arrecadação de direitos autorais de músicos no país, mostra que o número de canções com quatro ou mais compositores cresceu mais de 50% no ano passado, em relação ao acumulado de 2016 a 2019.

A tendência é reforçada com uma consulta nas músicas mais tocadas no Brasil nesta semana. “Rainha da Favela”, de Ludmilla, tem quatro autores, assim como “Modo Turbo”, de Pabllo Vittar, Luísa Sonza e Anitta, e “Ele É Ele, Eu Sou Eu”, de Wesley Safadão com Barões da Pisadinha.

Na música sertaneja, a prática da autoria coletiva já existe há anos, com Goiânia sendo o centro deste mercado de composições. Mas cantores de forró, brega e outros gêneros também estão inseridos na lógica —“Letícia”, hit de Zé Vaqueiro, tem quatro autores, mesma quantidade de “Só Tem Eu”, de Zé Felipe.

A ideia dos coletivos é usar o máximo de boas ideias possíveis para aumentar a chance de a música se tornar um hit, e é usada principalmente por quem está no topo do mercado, os artistas que investem em suas músicas. “Várias cabeças, cada uma fazendo o que faz de melhor, com certeza entregam algo muito mais certeiro”, diz Zegon.

Os números podem pôr em xeque o papel clássico do compositor solitário, como um Cartola ou um Tom Jobim —um dos que mais arrecadaram com direitos autorais no Brasil em todos os tempos—, um gênio que trabalha sozinho e distribui suas composições, famosas nas vozes de outros artistas. Mas não é bem assim, já que há questões comerciais e conceituais envolvidas nas listagens de compositores de uma música.

Muitos coletivos de compositores de sertanejo, por exemplo, incluem os nomes de todos os seus integrantes, mesmo que a música em questão tenha sido feita só por um deles —isso para que a divisão do dinheiro arrecadado seja igual.

Além disso, há um crescimento na inclusão de beatmakers e produtores como autores das faixas. Historicamente, esses atores são incluídos como intérpretes, o que gera uma receita menor.

No Ecad, dois terços do que é arrecadado com execução pública em rádio e TV —depois de descontados os 15% da empresa e das associações que a administram— vão para os autores. O outro terço é dividido entre os intérpretes. No streaming, a proporção é diferente, mas também deixa em desvantagem os intérpretes, que só têm direitos sobre o fonograma —a gravação da música— e não à obra —a composição, que é imaterial.

“O pensamento, não só meu, mas de muitas pessoas que trabalham no pop brasileiro, é que a música é feita com uma mistura, uma coletividade de pessoas. Quem produz, escreve ou dá uma ideia por acaso —todo mundo que participa da criação é compositor igual”, diz Pablo Bispo, autor de hits do pop nacional que integra não só um mas dois coletivos de composição, o Brabo Music Team e o Dogz Produção Musical.

“É uma briga antiga”, diz Zegon. “Eu jamais entraria em uma produção sem ter autoria. Composição é uma sociedade. Deveria ser sempre encarada dessa forma, trabalho em conjunto.”

Ele diz que os beatmakers são músicos e autores. “A música eletrônica deixou isso mais claro. Muitas vezes, numa música pop, não tem nenhum instrumentista, apenas o beatmaker, isso se confunde.”

Bispo reforça. “Quando você mostra uma música para mim no violão, por mais que você tenha escrito a música inteira —com melodia e tudo mais—, quando eu faço um beat, posso criar uma nota ou um fraseado que seja tão marcante quanto a letra. ‘Verdinha’, da Ludmilla, você reconhece quando começa o beat. É a mesma coisa de uma guitarra. Ela não faz parte da letra, faz parte da música.”

Além disso, com a música cada vez mais calcada em recursos digitais, a própria noção de composição “solitária” vem mudando. As colaborações, cada vez menos dependentes de encontros presenciais, aumentam e se tornam mais fluidas. E isso é ampliado pelo modelo de produção a partir de samples, usado hoje em toda música pop, mas principalmente no rap.

Entre os 30 autores de “Sicko Mode”, de Travis Scott, há pelo menos sete pessoas que cantam na música, além do rapper e de Drake, algumas delas com participações quase imperceptíveis. Além disso, o rapper Notorious B. I. G., morto nos anos 1990, é um dos compositores citados, já que tem uma música sampleada por Scott.

Ou seja, no caso do rapper americano, não há um time de compositores mas sim uma artista trabalhando com diversos participantes, sejam cantores ou produtores, e os creditando como autores. Beyoncé e Lizzo, por exemplo, já creditaram autores de tuítes —que viraram letras— como coautores de faixas delas.

De certa forma, nesses casos, o ato de compor está ligado a juntar todas essas peças do quebra-cabeça —onde entram as vozes, as batidas originais, a participação especial, os trechos de samples, um instrumento de complemento e daí em diante. A própria escolha de quem convidar para contribuir, nesse contexto, pode ser interpretada como um ato de composição.

Além disso, essa ideia de composição coletiva está muito mais ligada à música que chega ao topo das paradas do streaming —que cada vez mais funcionam como ações na Bolsa de Valores. Ou seja, está bastante ligada às canções que são pensadas para fazer sucesso.

“Tem muito artista que é apenas um produto, que não cria. Acho que existem dois caminhos. Sempre existirão artistas que criam e produzem sozinhos", diz Zegon. "Hoje, produzir e gravar a si mesmo é muito mais fácil, a tecnologia é bastante acessível. A tendência de supertimes está muito mais relacionada ao mainstream. O underground não precisa de ninguém para criar —e nunca precisou.”

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior do texto publicou incorretamente que o Ecad retém 15% da arrecadação com direitos autorais de canções. O correto é que ele fica com 10% e distribui os outros 5% a empresas

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