Descrição de chapéu The New York Times

Escândalos de pedofilia e conchavos levam editoras francesas às páginas policiais

Antes protegido pela elite intelectual, setor enfrenta a revelação de crimes e ligações perigosas entre seus dirigentes

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Norimitsu Onishi Constant Méheut
Paris | The New York Times

As editoras da França em geral vivem resguardadas nas pacatas seções de livros dos jornais e são discutidas em tons próximos da reverência nos programas literários de TV. Mas, nos 12 meses passados, elas viveram sob os cruéis holofotes de investigadores online determinados a expor suas práticas e foram parar nas páginas policiais.

A sede da editora Proust et Céline, em Paris, foi alvo de uma operação policial em fevereiro, na qual as autoridades estavam em busca de documentos que incriminassem um escritor pedófilo, Gabriel Matzneff. Um editor poderoso foi preso por envolvimento num esquema que valeu a Matzneff um prestigioso prêmio literário, conferido por um júri que incluía o ganhador do Nobel de literatura de 2008, um “imortal” da Academia Francesa e alguns dos escritores de maior sucesso de vendas na França.

Esses e outros desdobramentos revelaram um quadro mais amplo de uma elite literária isolada e fora de contato com a realidade, acostumada por tempo demais a operar como se as regras convencionais –de moralidade, negócios ou senso comum– não se aplicassem a seus integrantes, de acordo com dezenas de entrevistas conduzidas no ano passado.

“É provavelmente um dos últimos mundos que se manteve tão protegido contra investigações e contra a documentação de entendimentos ou acordos ilícitos e compadrio”, disse Olivier Nora, presidente da Grasset, uma das grandes editoras francesas. “É um dos últimos mundos que escapou à intromissão de alguém interessado em procurar esse tipo de coisa.”

Foi Nora mesmo que atraiu o escrutínio, ao publicar um livro, “Consentimento”, que narra a história de Vanessa Springora, que aos 14 anos de idade se envolveu com Matzneff, um escritor abertamente pedófilo que foi protegido durante décadas pela elite literária, de mídia e política da França. A publicação do livro, em janeiro do ano passado, e revelações subsequentes sobre Matzneff, por seus defensores e por outras de suas vítimas, serviram para deflagrar um movimento MeToo na França, um acerto de contas sobre sexismo, idade e consentimento, que resultou em confrontos entre políticos e feministas em Paris.
Nora disse que não hesitou em publicar o livro, ainda que seu conteúdo expusesse um integrante dos pequenos círculos literários franceses.

“O ambiente é tão incestuoso que, se você começar a considerar que algo vai desagradar a essa ou àquela pessoa, termina não publicando”, disse ele, acrescentando que “imaginei que o livro causaria impacto naquele pequeno ambiente, mas jamais pensei que teria um efeito borboleta e terminaria em um tsunami”.

Como comandante de uma das grandes editoras francesas pelos últimos 20 anos, Nora, de 60 anos, ocupa um papel incomum na França, o de presidente-executivo de um negócio, mas também o de defensor do que ele mesmo descreve como “o bem social”, num país em que a ficção continua a ser sagrada.

Numa recente entrevista de duas horas de duração, em seu escritório, Nora falou de seu compromisso firme quanto a publicar obras que refletem as visões divergentes de uma sociedade que muitas vezes parece estar em guerra consigo mesma, ainda que ele admita que o setor editorial francês –onde a diversidade é menor até mesmo que a das editoras americanas– muitas vezes tenha se provado incapaz de fazer isso.

Ele parecia conflitado entre sua crença de que os júris literários franceses –repletos de conluios e de conflitos de interesses– precisam de reforma e sua dúvida de que uma reforma seja possível. E ele não era a única pessoa a sentir dúvida.

Hugues Jallon, que desde 2018 comanda a Seuil, outra das grandes editoras francesas, disse que se sente cada vez mais frustrado com a influência corrosiva dos júris literários.

Diferentemente do Booker Prize, no Reino Unido, ou do Pulitzer, nos Estados Unidos, nos quais os júris mudam a cada ano e jurados se declaram inaptos a participar de votações que possam envolver conflitos de interesses, na maioria dos prêmios literários franceses importantes os jurados são membros permanentes das comissões julgadoras e alguns deles são empregados de editoras, o que ajuda a preservar os interesses de uma elite estabelecida.

“É um sistema aberrante”, disse Jallon, de 50 anos. “Deveria haver regras severas contra ser jurado de um concurso se você é empregado de uma editora.” Há muito dinheiro em jogo. O impacto dos prêmios sobre as vendas e lucros das editoras é tão grande, disse Jallon, que isso afeta as decisões sobre o que a Seuil vai publicar e pode fazer com que certos manuscritos não saiam.

Quando o assunto são prêmios, e concursos importantes como o Renaudot, é comum que exista pressão, disse Jallon. “Nós nos reunimos com os jurados e recomendamos que leiam tal livro, afirmando que parece ter sido escrito para eles.”

O impacto financeiro de conquistar um prêmio Goncourt, o mais prestigioso da França, “é enorme, distorce completamente as coisas”, disse Jallon, acrescentando que os proprietários da Seuil estão muito cientes disso. “Eles sempre querem saber quem vai ganhar o Goncourt do ano”, disse o editor.

As reservas expressadas por Nora e Jallon são especialmente significativas porque, em termos históricos, em companhia da Gallimard, as editoras que eles dirigem, Grasset e Seuil, lideram a indústria editorial na França. Apelidadas “Galligrasseuil”, as três dominam os prêmios literários.

Desde 2000, essas editoras receberam mais de metade dos prêmios nos quatro principais concursos literários franceses e ao mesmo tempo publicam os livros de 70% dos jurados que os concedem. Dos 38 jurados atuais nos quatro principais prêmios literários da França, cerca de 20% são empregados de uma das três grandes editoras.

Antoine Gallimard, que comanda a empresa fundada por seu avô, recusou pedidos de entrevistas para esta reportagem. Embora seja em geral considerada como a mais prestigiosa editora da França, a Gallimard foi criticada neste ano por ter publicado os livros de Matzneff por muito tempo.

Jean-Yves Mollier, especialista em história do mercado editorial, disse que a Gallimard demora mais a mudar do que as outras grandes editoras. “Eles fingem que estão acima dessas disputas e consideram que a pátina do tempo os isenta de entrar na arena”, disse Mollier.

Especialistas e pessoas informadas sobre o setor afirmam que a Gallimard é a editora mais agressiva na busca pelos grandes prêmios literários.

Béatrice Duval, comandante da Le Livre du Poche, a maior editora de livros de bolso da França, e ex-editora da Gallimard, disse que a estratégia de negócios de seu antigo empregador tem por foco a conquista de prêmios.

Na Grasset, Nora disse que começou a tentar desvincular a companhia da busca de prêmios ao assumir o posto, duas décadas atrás.

Na época, a Grasset costumava pagar adiantamentos generosos a escritores que integravam júris, a fim de garantir sua lealdade –uma prática que terminou por atrair a atenção das autoridades tributárias, porque os autores da companhia muitas vezes não se incomodavam em entregar os manuscritos pelos quais haviam recebido pagamentos. Não que isso necessariamente incomodasse a Grasset.

“Você sabia que tinha em suas mãos alguém que não cumpriu um contrato com sua empresa –ou seja, uma pessoa que está em dívida moral com você, o que aumenta sua influência sobre essa pessoa”, disse Nora.

Hoje, embora as editoras possam reduzir os adiantamentos futuros de escritores por causa de vendas fracas, elas dificilmente o farão caso o escritor seja parte de um júri, disse Nora.

Não há “talento” suficiente no pequeno mundo literário da França para estabelecer um sistema de júris com novos integrantes a cada ano, disse Nora. Ele indicou que substituir um terço do júri a cada cinco anos seria mais viável e renovaria os quadros.

Mas Duval declarou que, acima de tudo, era a resistência da elite literária que tornava impossível adotar júris novos a cada ano. “Todas as pessoas envolvidas não têm interesse em que as coisas mudem”, ela disse, acrescentando que as grandes editoras se beneficiam de empregar jurados ou de publicar seus livros. “Fica mais fácil para as editoras controlar os júris, dessa maneira.”

​Hoje, os júris são dominados por homens brancos envelhecidos, donos de posições vitalícias, o que resulta numa espécie de “entropia” que, segundo Nora, também afeta o setor editorial –e a França como um todo. Se o mundo literário continua “muito, muito, muito branco”, ele disse, o mesmo pode ser afirmado sobre “a imprensa, a televisão e a política francesas”.

Os poderosos comitês de leitura das editoras e os leitores profissionais, que decidem o que será publicado pelas mais prestigiosas casas editoriais do país, não refletem a diversidade da sociedade francesa.

Entre os 37 membros dos comitês de leitura da Grasset, Seuil e Gallimard, a idade média é de 62 anos; cerca de um terço dos integrantes dos comitês são mulheres, e apenas uma das pessoas envolvidas não é branca, de acordo com dados fornecidos por editores das três companhias.

Nora disse que está agudamente consciente de que as gerações mais velhas de franceses têm uma perspectiva diferente sobre gênero, feminismo, raça, colonialismo e as demais questões sociais prementes do país.

“É óbvio que a conscientização sobre tópicos quentes é algo que pessoas da minha geração experimentam de forma defensiva –há extrema dificuldade em pensar contra si mesmo e em desconstruir um sistema do qual somos o produto”, ele disse. “Uma grande dificuldade.”

Foto de prateleiras cheias de livros
Livraria Librairie des Abbesses no bairro de Montmartre, em Paris - Stephane de Sakutin/AFP

Mas há quem esteja começando a enfrentar o problema. No ano passado, a editora JC Lattès, controlada pela mesma empresa que controla a Grasset, criou uma nova série, “La Grenade”, para publicar trabalhos de escritores não convencionais. “A primeira tentativa explícita de pôr a ação afirmativa em prática na literatura francesa”, disse Nora.

A pessoa que comanda a coleção, Mahir Guven, de 34 anos –filho de refugiados indianos e curdos e romancista e editor que foi encorajado por Nora–, disse que procura autores inéditos, que não consideram ter voz na França. “Há textos faltando na França”, ele disse.

Tradução de Paulo Migliacci

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