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Filme 'Atravessa a Vida' revela aflição e potência às vésperas do Enem

Documentário acompanha jovens do interior de Sergipe que se preparam para o exame e promove reflexão sobre educação

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São Paulo

É com um misto de esperança e angústia que se assiste ao documentário "Atravessa a Vida", de João Jardim, que estreia nesta quinta-feira (14).

O filme se propõe a retratar alunos de uma escola pública do interior de Sergipe que vão fazer o Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio, mas é muito mais que isso.

Ele mostra uma fase da vida em que os jovens estão prestes a deixar a proteção da escola em direção a um futuro incerto.

É um estágio de transição, e de certa maneira todos aqueles estudantes prestes a se formar são ainda potência, para tomar emprestado o conceito de Aristóteles ensinado logo numa das primeiras cenas pelo professor de filosofia da escola estadual Milton Dortas. Nesse sentido, são jovens da cidade de Simão Dias, a cem quilômetros de Aracaju, mas poderiam estar em qualquer lugar.

No filme de João Jardim, assim como no seu excepcional "Pro Dia Nascer Feliz", são eles que falam, com poucas intervenções.

A diferença em "Atravessa a Vida" é que as entrevistas são minoria. A maior parte das cenas retrata debates nas aulas e conversas espontâneas entre os estudantes, ou entre esses e os professores ou a diretora.

Sai daí um retrato especialmente bonito da amizade e da educação em seu sentido mais amplo, para além do conteúdo curricular. Numa das cenas mais tocantes, a diretora consola uma aluna com problemas em casa. Ao fazer isso, ela se emociona e acaba sendo consolada pela estudante.

O filme é muito competente em mostrar o valor do professor que acolhe, questiona e leva o jovem a pensar por si próprio, como ocorre em conversas em sala sobre suicídio, aborto e pena de morte.

Contribui para a riqueza dos debates o fato de a escola Milton Dortas contar com professores e alunos evidentemente muito comprometidos, ainda que, como o filme bem mostre, tenha problemas comuns a diversos outros colégios do país, como faltas, atrasos, falhas de estrutura, entre outros.

A escola foi escolhida para a filmagem após reportagem deste jornal mostrar que, no Enem de 2016, foi a que obteve melhor resultado no país entre as unidades de grande porte que concentram alunos pobres.

O documentário informa que, dos 371 estudantes da turma no ano das filmagens, 110 ingressaram no ensino superior público ou privado –30%.

Teria sido interessante se tivesse explicitado o quão excepcional é essa façanha.

No Brasil, 29,1% dos jovens de 15 a 17 anos não estão no ensino médio. Só 21,5% dos que têm entre 18 e 24 anos cursam o nível superior. Entre os 25% mais pobres, como os de Simão Dias, essa parcela cai para 10,7%.

Quase triplicar esse índice é um feito que não se alcança sem jovens engajados e educadores que realmente se importam com o trabalho.

Nesse sentido, a escolha do Milton Dortas se revela muito feliz como objeto da investigação sobre essa fase da vida. Que não seja um colégio modelo nem um estereótipo da escola pública detonada o local de encontro de todos aqueles jovens entusiasmados, ávidos pelo futuro, ainda que tenham feridas —tudo isso transmite esperança.

É pensando no panorama mais amplo, talvez, que venha a angústia, agravada ainda pela triste circunstância de o filme estrear com a maior parte das escolas do país fechadas em decorrência da pandemia do coronavírus.

As sequências em que os estudantes, já sem os uniformes, vão fazer o Enem mostram que agora já não fazem parte de um grupo tão coeso, e é inevitável especular quantos conseguirão concluir o ensino superior, quantos seguirão atrás dos seus sonhos, quantos manterão a cabeça aberta para pensar e até para mudar de opinião e, principalmente, quão unidos continuarão.

“A gente não sabe o que vai acontecer com a gente”, diz, com lágrimas nos olhos, uma jovem numa das poucas entrevistas do filme. A aflição pelo desconhecido e a esperança de que toda aquela potência não se perca são compartilhadas com o espectador.

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