Meme do leite condensado relembra performance radical da artista Márcia X

Em 'Pancake', de 2001, ela derramava entre dez e 12 latas do doce sobre o próprio corpo

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São Paulo

Uma mulher derrama latas e mais latas de Leite Moça sobre a cabeça —de dez a 12, mais precisamente. Depois, peneira quilos de confeito colorido sobre si mesma. Deixa a seus pés uma argamassa de pontinhos coloridos digna do asfalto depois da passagem de um bloco de Carnaval.

A artista Márcia X apresenta a performance 'Pancake' em evento em São Paulo - Divulgação

Imagens da ação circularam nas redes sociais depois da publicação, nesta terça (26), de uma reportagem do portal Metrópoles que afirma que órgãos do poder Executivo federal gastaram mais de R$ 15 milhões em leite condensado no ano passado. Vale notar que quase R$ 14 milhões destes foram gastos pelo Ministério da Defesa, que alimenta as tropas das Forças Armadas em serviço.

A performance retratada é de 2001, bem antes do reinado dos memes. E a mulher que aparece nela, Márcia X, performer carioca morta em 2005, aos 45 anos, de câncer. Sua obra, de tão censurada e perseguida, ficou anos fora do radar até ressurgir com força numa mostra no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 2012.

Antes de despejar leite condensado sobre o próprio corpo, Márcia apareceu coberta por apenas um plástico transparente num shopping carioca. Criou bacanais com todos os tipos de bonequinho, dos bebês em variadas posições sexuais de "Os Kaminha Sutrinhas" à dupla de Papais Noéis de "Papai-Papai". E usou terços para desenhar contornos de pênis numa obra censurada pelo Centro Cultural Banco do Brasil em 2006.

A iconoclastia contaminava toda a sua obra. Ou, como ela mesma definiu numa entrevista a este jornal de 2001, o caráter de suas performances e instalações "mistura os imaginários religioso, pornográfico, infantil e feminista".

O último está especialmente presente no trabalho do Leite Moça, chamado de "Pancake". O nome faz alusão a um item de maquiagem que faz as vezes de base e de corretivo, na performance transmutado "numa máscara excessiva, pesada e deformada", como descreve Luana Saturnino Tvardovskas, professora da Unicamp, na dissertação "Figurações Feministas na Arte Contemporânea".

O resultado, acrescenta Tvardovskas, remete às tradicionais estátuas de mármore branco, ao mesmo tempo em que os confeitos coloridos coroam "a ironia de ser um docinho de festa". "Se o mundo é asséptico, sem cores e gostos, Márcia X fornece ao espectador um 'pan-cake', um bolo para todos", escreve.

O bolo podia ser para todos —mas a obra de Márcia estava longe de ser unânime. Quatro anos antes da censura do CCBB, motivada pela pressão de grupos católicos, uma performance da artista no Sesc envolvendo os mesmos terços em forma de pênis foi cancelada de última hora, segundo afirmou seu primeiro marido, o artista plástico Ricardo Ventura, na época do episódio.

E, nos anos 1980, quando toda uma geração do Parque Lage voltava sua energia para a pintura, nem todo mundo compreendia suas ações.

"Ninguém sabia o que significava performance. Agora, a imprensa se ocupa em dizer que isso é a última moda, demonstrando que a situação evoluiu da ignorância completa para uma confusão diluidora", ela desabafou em 1986, numa carta a um colunista do Jornal do Brasil.

O colunista não entendera uma performance em que ela vestia uma roupa de plástico transparente que ia sendo cortada em pedaços pelo poeta Alex Hamburger. O episódio terminou num confronto com a polícia.

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