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Moda do pós-pandemia troca pijama pelo brilho das noites de pancadão

Isolamento do coronavírus detonou nos estilistas de marcas como Ken-gá e Boldstrap uma vontade de festa com aura queer

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Modelo veste look da Ken-gá, uma das marcas da moda no pós-pandemia

Modelo veste look da Ken-gá, uma das marcas da moda apostando no pós-pandemia Divulgação

O ano de 2020 pode ter sido dos moletons para ficar em casa, mas eles não representam o movimento desenrolado nos últimos 12 meses nos ateliês de marcas independentes que, neste 2021, têm força para definir a cara da costura autoral brasileira.

Estilistas deram “reset” nos modelos antigos de produção e jogaram fora a estética correta demais usada como fórmula de vendas para dias incertos e, assim, desenham um retrato das demandas da nova cultura jovem que encerra de vez a última década.

Os brilhos da noite estão menos vinculados ao tapete vermelho estrangeiro e mais próximos dos pancadões; a cultura “queer” saiu dos guetos disposta a injetar carga política em resposta à homofobia cotidiana; o padrão de beleza universalizado em revistas desmoronou, e o lixo foi ao luxo, fazendo a rota inversa sagrada no passado.

Um dos bons exemplos de como a nova geração fashionista que ascende hoje ao consumo recebe e aceita estímulos diferentes daqueles instituídos pelo rolo comercial é a Ken-gá, da estilista Lívia Barros em sociedade com a empresária Janaína Azevedo.

Apoiadas na esteira do empoderamento feminino dos últimos anos e no hipercolorismo que forra a moda popular do país, conseguiram colar uma etiqueta autoproclamada “bitchwear”, ou moda vadia, na marca de “beachwear”, a velha moda praia, em corpos de famosos e anônimos.

O último desfile da grife na Casa de Criadores, há cerca de um mês, foi feito em parte com sobras têxteis do Brás, na região do comércio popular de São Paulo, e levam as tintas, a música e o teor sexual do estilo incrustado nas noites selvagens pré-pandemia.

As duas conjuram com humor o estado de rir para não chorar que toma o noticiário brasileiro. Imprimem nas imagens um sonoro “kkkkk”, onomatopeia do dicionário das redes sociais, e enfiam modelos em jeans reciclados com fendas na “raba”, para usar o jargão notívago estampado pela marca, e óculos espelhados com pinta de pirata.

Da mesma forma que parte significativa da nova leva de grifes autorais, a Ken-gá, batizada com esse nome para ironizar o termo pejorativo “quenga” direcionado às mulheres, não quer se fixar em regiões nobres, porque prefere o trânsito convulsivo fashionista —a loja da marca acaba de ser aberta no edifício Louvre, na região central da capital paulista.

O viés sexual não é unânime entre as neogrifes, mas, quando ele aparece, vem num pacote imagético usado para tirar da margem fashionista as causas e lutas ofuscadas pelas grifes ricas. É o caso da Boldstrap, do estilista Pedro Andrade.

Ao lado de nomes independentes da cena como o veterano Rafael Caetano, ele põe em primeiro plano a cultura queer, que não resume ideias aos cortes de gênero para agradar homens ou mulheres, preferindo se desgarrar da normatização do varejo.

Sua última coleção extrapola o tom erótico da marca, mais centrada em couro, lingerie e itens de moda urbana, para destrinchar o lado masoquista do militarismo, uma estética que chegou às ruas do país no ano passado travestida em camuflados e verdes-oliva.

Os quepes e as botas no estilo do artista finlandês Tom of Finland se confundem às meias arrastão, aos arreios de couro e às “jockstraps” —a roupa íntima esportiva com abertura nas nádegas com versões mais fetichistas que ganharam o mercado mundial.

Ainda que suas imagens apresentem modelos enclausurados em jaulas, esse tipo de olhar erotizado sobre o corpo, seja ele gordo ou magro, serve de contraponto à homofobia enraizada nos dados de crimes de ódio contra essa população no Brasil.

E ainda que soe como algo de nicho, essa estética já é um dos matizes mais pujantes das vitrines de do varejo internacional do início deste século. Por isso, também, a marca já adota versão em inglês de sua loja online.

Os modelos de difusão de moda acompanham também a quebra de valores proposta pelas grifes independentes, que, às vezes, nem grifes são exatamente. É o caso da Reif.Life, um projeto multiplataforma, também apresentado na última Casa de Criadores, que nasceu pelas mãos do diretor de arte português Marcelo Alcaide. Ele agora transfere para roupas o conceito de improviso que deu o tom nas noites de festa berlinenses nas quais chamava DJs para experimentar notas eletrônicas.

Nesta incursão, que chamou de Reif Non, construiu com acervos de roupas doados de diversas fontes uma colaboração com diretores criativos brasileiros que, por sua vez, chamaram marcas independentes para recriar as peças, com estampas, bordados e novas modelagens.

A plataforma tem propósito social e reverte 40% da venda concentrada na multimarcas Cartel 011 a entidades não-governamentais que ajudam pessoas em situação de vulnerabilidade em São Paulo e às margens do rio Amazonas.

O reúso de materiais descartados, o cuidado com os recursos ambientais e o empreendedorismo social são chaves para entender a ribalta das marcas que não estão nos comerciais da TV. Três delas já provam que o modelo é economicamente sustentável.

A paulistana Oriba tem dado o que falar com o lançamento recente de uma calça jeans experimental com matéria-prima, lavagem, aviamentos e confecção rastreados de ponta a ponta, no que talvez seja o modelo mais ecológico criado no país.

Um outro experimento, da marca paraibana Natural Cotton Color, dedicada exclusivamente ao algodão orgânico colorido, é um tecido de jeans livre de químicos feito com cruzamento de fios. A grife já é uma das maiores fornecedoras do país no segmento.

Ainda na ala sustentável e alheia aos métodos de confecção em série, a estilista Flavia Aranha cresceu sua marca homônima ancorada em tecidos e tingimentos naturais em plena pandemia. Com dinheiro de investidores, abriu no mês passado sua segunda loja, agora nos Jardins, no pedaço mais hype do bairro que concentra a elite da costura.

Se a paisagem fashion nacional resistia a mudar de cara para assumir um retrato factível sobre o estilo, os problemas e o potencial criativo do Brasil, o isolamento imposto parece ter quebrado os grilhões do eurocentrismo das mãos dos designers e, enfim, aberto as portas para um cenário mais diverso nas vitrines da nova década.

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