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Por que não houve grandes artistas mulheres? A história feminista da arte responde

A historiadora da arte Linda Nochlin formulou essa pergunta 50 anos atrás num ensaio radical cujo impacto é sentido até hoje

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Jackie Wullschläger
Financial Times

Por que não houve grandes artistas mulheres? Há quatro respostas possíveis –culpar a biologia (intolerável), culpar o contexto social (autoevidente), negar (insincero, já que por mais que possamos querer que não tivesse sido o caso, Artemisia não foi tão boa quanto Caravaggio) ou driblar, afirmando que “inovar, criar trabalhos interessantes e provocantes, causar impacto e se fazer ouvir” é mais importante que a “grandeza”.

Num ensaio brilhante de 1971, “Why Have There Been No Great Women Artists?”, ou por que não houve grandes artistas mulheres, a historiadora da arte Linda Nochlin formulou e respondeu a pergunta que deu o pontapé inicial na história feminista da arte.

Não há como questionar o impacto transformador de sua lente sociopolítica. Basta olhar para as principais exposições que estavam em cartaz em Londres quando a cidade entrou em lockdown –"Artemisia" na National Gallery, "Tracey Emin/Edvard Munch" na Royal Academy, a fotógrafa ativista LGBT Zanele Muholi na Tate Modern, as pintoras figurativas negras Lynette Yiadom-Boakye na Tate Britain e Jennifer Packer na Serpentine, a videomaker indiana Nalini Malani na Whitechapel.

E então, como Nochlin nos convida a fazer num post scriptum do século 21 publicado na nova edição de cinquentenário de seu ensaio, “voltemos o relógio para trás para novembro de 1970, uma época em que não havia estudos feministas, não havia teoria feminista, não havia estudos afro-americanos, não havia teoria queer, não havia estudos pós-coloniais". "O que havia era uma teia ininterrputa de grande arte, frequentemente chamada de ‘das pirâmides a Picasso’, exaltando as grandes realizações artísticas (masculinas, é claro) desde a aurora da história.”

Num desfile de moda em 2017, o ano em que Nochlin morreu, a Dior estampou camisetas com a frase “por que não houve grandes artistas mulheres?”. Irônico —um protesto assimilado na passarela—ou icônico?

“A história feminista da arte é uma prática transgressora e antiestablishment”, insistiu Nochlin. Mas será que tem sido tão persuasiva –como deixam implícitas as exposições de inverno em Londres, todas menos uma tendo curadoria de mulheres, em museus em sua maioria comandadas por mulheres— que agora já virou o establishment? Como Nochlin mudou o paradigma tão efetivamente? E houve um custo?

Linda Nochlin, historiadora de arte americana, Professora Emérita da cátedra Lila Acheson Wallace de Arte Moderna no Instituto de Belas Artes da Universidade de Nova York
Linda Nochlin, historiadora de arte americana - Sara Morgan/Allen Memorial Art Museum

Um dos prazeres que sua escrita nos proporciona é que Nochlin é um cavalo de Troia. Sua posição política emerge das profundezas da tradição da história da arte. Sua especialidade acadêmica foi a pintura oitocentista francesa, e não há quadro que sua leitura analítica arguta não ilumine.

O belíssimo “Menina com um Galgo”, por exemplo, de Berthe Morisot, é “uma visão de leveza evanescente, uma obra de omissão, de quase nada”. Morisot retratou sua filha após a morte de seu marido e pouco antes de sua própria morte, por meio de espaços que assinalam a ausência dele e sua presença duradoura sobre a tela, para sua “amada filha única”.

Obra do pintor impressionista Manet, denominada "Retrato de Berthe Morisot Estendida"
Obra do pintor impressionista Manet, denominada 'Retrato de Berthe Morisot Estendida' - Reprodução

Quando isso foi escrito, Morisot era vista como uma artista de importância menor, e Nochlin, em 1970, fez questão de ironizar tentativas de demonstrar “que Berthe Morisot teria na realidade sido menos dependente de Manet do que fomos levados a acreditar”. Em vez disso, ela postulou um significado diferente –a “relação de Morisot com o impressionismo clássico levou mais longe tudo que estava implícito no movimento”.

Rejeitando como súplicas especiais os esforços para “buscar exemplos de mulheres notáveis ou insuficientemente apreciadas”, Nochlin provou, com simplicidade e clareza, como o patriarcado e o preconceito mantiveram as mulheres longe das escolas de arte durante séculos, longe de modelos nus, longe de exposições.

As poucas mulheres que fizeram carreira na arte —Artemisia, Élisabeth Vigée Le Brun, Rosa Bonheur—tiveram acesso familiar à arte. Na maioria dos casos, seu pai tinha sido pintor. Manet era cunhado de Morisot.

Em 1971 Nochlin foi inequívoca. “A verdade é que não houve mulheres artistas de grandeza ímpar”, ela escreveu, questionando por que a ponta “de um iceberg de interpretação e concepção equivocada” ilustra “todo o edifício romântico, elitista, glorificador de indivíduos” da história da arte.

Ela elucida o contexto em seu post scriptum. A obsessão que a América do pós-Guerra tinha com a “grandeza” individual –ela subjaz o aspecto heroico da expressão pessoal de Pollock, De Kooning, Guston— fazia parte de uma visão de mundo “em que a promoção de ‘intelectuais’ era uma prioridade da Guerra Fria, num momento em que a preocupação estratégica dominante era o medo de perder a Europa ocidental para o comunismo”.

E agora? O mais fascinante da nova edição é a análise que Nochlin faz de artistas mulheres desde 1971 e da recepção dada a elas, em meio à ampliação dramática das oportunidades que estão abertas.

Registro da obra "House" (1993), da escultora britânica Rachel Whiteread
Registro da obra 'House' (1993), da escultora britânica Rachel Whiteread - Divulgação

A seção sobre escultura é magistral. Em oposição ao “confronto agressivo com o espaço público” de Richard Serra, Nochlin destaca as antimemorialistas dos anos 1990, o magnífico “House”, de Rachel Whiteread, e seu memorial ao Holocausto em Viena “que vira o tema e a forma do avesso”; e o “memorial conceitual” de Jenny Holzer ao poeta Oskar Maria Graf, que assume a forma de um café funcional no Literaturhaus de Munique.

Nochlin destaca o domínio das mulheres “na derrubada das barreiras entre a mídia e os gêneros”. Com certeza as novas mídias as libertam da pesada tradição masculina, como ocorre na pintura. Ela se pergunta se a influência hoje não flui no sentido oposto. “Os filmes de William Kentridge, com suas insistentes metamorfoses de forma, fluidez de identidade e entremear do pessoal e do político, me parecem impensáveis sem a presença anterior da arte feminista.”

A artista plástica Jenny Holzer
A artista plástica Jenny Holzer - Patrícia Santos/Folhapress

Pode ser. Mas Kentridge é inegavelmente uma figura imponente, enquanto os exemplos que Nochlin oferece de “mulheres inventando novas mídias” –Sam Taylor-Johnson, Pipilotti Risti, Janine Antoni—em muitos casos são tão triviais que se tornam constrangedores. A questão se nega a desaparecer. Se a grandeza é desautorizada, vista como politicamente incorreta, como avaliar?

O problema se torna cômico quando Nochlin fala de artistas mulheres realmente importantes, notadamente Joan Mitchell, que clamam pelo termo “grandeza”. Nochlin o substitui por “grandiosidade à moda antiga”.

Ela escreveu penetrantemente em outros textos sobre a tensão entre estrutura e caos no trabalho de Mitchell, entre densidade e transparência, “férteis sinais de significado e sentimento”.

Mitchell é a maior artista mulher do século 20. Pronto, falei. Embora tenha chegado “atrasada”, como Nochlin aqui argumenta, em relação ao expressionismo abstrato, ela, como Cy Twombly, inventou de modo deslumbrante uma linguagem para expressar essa postura elegíaca.

"Eduoard", pintura da artista plástica Joan Mitchell
'Eduoard', pintura da artista plástica Joan Mitchell - Reprodução

Mitchell nunca teve uma retrospectiva num museu europeu. Outra expressionista abstrata tremenda, Lee Krasner, teve sua exposição inaugural num museu britânico só em 2019 –não na Tate, mas no Barbican.

Será que isso ocorreu porque a história da arte feminista afrouxou uma camisa de força apenas para a substituir por outra? Que a arte que trata da política de identidade é, cada vez mais, o único tipo de trabalho por mulheres que está ganhando aceitação institucional? É sem dúvida essa a característica que define todas as contemporâneas nas exposições deste inverno em Londres.

Em contraste com isso, a pintura de Joan Mitchell e Lee Krasner não tem conexão com a política de gênero —nem sequer é identificável como arte feita por mulheres. Não seria essa a liberdade real?

O pós-escrito de Nochlin termina com uma crítica da “hegemonia masculina ainda em curso no mundo da arte”, através de um ataque constrangedor ao tremendo e inovador curador Kirk Varnedoe, do MoMA –“ele se transformou em jogador de futebol”– logo após sua morte precoce de câncer.

Visitantes do Guggenheim Museum, em Nova York, observam pinturas da artista Lee Krasner
Visitantes do Guggenheim Museum, em Nova York, observam pinturas da artista Lee Krasner - Vincent West/Reuters

O feminismo não precisa disso. Então ela reclama —e não apresenta nenhuma defesa— que as historiadoras feministas da arte “são acusadas de pecados como dar atenção insuficiente à questão da qualidade, destruir o cânone, minimizar a dimensão inatamente visual da obra de arte e reduzir a arte às circunstâncias de sua produção”. As acusações se mantêm; será preciso pelo menos mais meio século para a resposta ficar clara. Quer você concorde com ela ou não, Nochlin é fascinante, impossível de se parar de ler.

A edição de 50º aniversário de “Why Have There Been No Great Women Artists?” é publicada pela Thames & Hudson.

Tradução de Clara Allain

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