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Renascentista da quebrada, José Falero faz literatura que vai de Machado a Tarantino

Escritor gaúcho que vive na periferia de Porto Alegre mescla erudição e oralidade em 'Os Supridores', seu romance de estreia

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Porto Alegre

Como um renascentista das “quebradas” da capital gaúcha, José Falero aprendeu música, desenho, programação e escrita literária. Não fez cinema porque não tinha dinheiro para comprar uma câmera e filmar por conta própria —o método autodidata foi o mesmo que levou o escritor de 33 anos a desenvolver suas outras habilidades.

“O que conseguia era o suficiente para comprar folha de ofício para fazer minhas histórias em quadrinhos”, relembra sobre a juventude na Lomba do Pinheiro, no extremo oeste de Porto Alegre, onde ainda vive.

josé falero
O escritor José Falero - Divulgação

Falero publicou neste ano seu primeiro romance, “Os Supridores”, pela Todavia. O livro teve seus direitos vendidos para a editora francesa Metailié e recebeu oferta para ser publicado em língua inglesa.

A idade exata que tinha quando decidiu escrever e ilustrar suas histórias em quadrinhos ele não sabe. Não é bom com datas, confessa. Mas é bom de gramática, que igualmente aprendeu de forma independente.

“Foi uma delícia. Era muito bom estudar gramática. Eu era fanático, gostava muito. Mas meu texto tinha, então, esse ranço com a oralidade. A ponto de os diálogos serem assim "eles foram, agora é 'eles foro'". Era absurdo, nas quebradas de Porto Alegre, falando ‘não obstante’. Me negava a incluir a oralidade e o jeito que as pessoas falam”, lembra sobre a primeira versão de seu romance de estreia.

Falero chegou a conclusão de que precisava revisar todo o livro e lapidar cada diálogo já escrito. “A primeira versão demonstrava o cara preconceituoso que eu era. Era um cara que pensava que existia o certo e o errado, a dita norma culta e que era errado o meu próprio jeito de falar. Era uma violência comigo mesmo”, diz.

Falero já foi comparado com Machado de Assis, neste jornal, em crítica do professor de teoria literária Alcir Pécora. ​“Os Supridores” narra a história de funcionários de um supermercado, Pedro e Marques, que se revoltam com a falta de mobilidade social apesar do trabalho árduo como repositores. O autor já trabalhou na mesma função dos personagens.

“Nesse vaivém entre evento e comentário irônico a disputar a primazia da narração, se revela o viés machadiano de Falero”, definiu Pécora.

De fato, Machado é um dos autores que Falero lista entre seus preferidos desde que mergulhou no cânone, depois de um período em que os livros aos quais tinha acesso eram emprestados das famílias dos amigos e vizinhos, incluindo obras didáticas.

“Machado está nas minhas bases, é dos primeiros escritores que me impressionaram. Por sua elegância, uma narrativa sem farelo, sem aresta, sem sobrar palavras, na medida. Sempre na ponta da língua de maneira econômica. Eu achava lindo”, comenta agora honrado com a comparação.

“Os Supridores” alterna texto formal e informal, uma forma que Falero encontrou após o exercício intenso de escrita, em que jogava fora seus textos. “Tinha consciência que não ia ser bom de cara, que teria que insistir, fazer de novo e estudar. Escrevia muito a título de exercício e experimentação. Na medida em que ia interiorizando alguns conceitos de produção, escrevia para os fundamentar dentro de mim. Escrevia textos curtos que estava disposto a tacar fora”, conta.

A consciência de que “não ia ser bom de cara” é resultado da noção sobre os processos de aprendizado de teoria musical e linguagem de programação de computadores. Assim, além da leitura de ficção, estudava gramática.

“Quando comecei a escrever, decidi que precisava estudar e exercitar. Um carpinteiro que não domina o martelo não é um carpinteiro. Cheguei a pensar assim, que o estudo das regras seria como os ossos do ofício, que seria um saco, mas valeria a pena”, diz.

Na verdade, se apaixonou pelo estudo da língua portuguesa apesar de ter abandonado a escola. “Minha namorada fala algo que faz sentido. Ela diz que, na verdade, a escola me abandonou antes de eu abandonar ela. Apesar do desejo de aprender, me senti sabotado pela escola. Parei de estudar, faço um esforço para terminar, sou aluno de EJA”, diz.

Falero se lembra de um episódio de violência simbólica e física que o fez se sentir fora de lugar na escola. Numa atividade com música e dança, cantou os primeiros versos de “Fórmula Mágica da Paz”, dos Racionais MCs.

“Essa porra é um campo minado”, ele iniciou. Mas foi interrompido pela professora. “Ela me expulsou com truculência, me pegou com força pelo braço. É simbólico também porque a mensagem era de que não era um lugar para mim, que minha bagagem não tinha valor. Muitas coisas nesse sentido tornavam a escola insuportável e me encontrei fora dela. Olhando para trás, vejo que encontrei a minha própria didática, que dá conta de aprender as coisas do meu jeito”, lembra.

“Sobrevivendo ao Inferno”, conjunto das letras do álbum de mesmo nome dos Racionais MCs, recentemente tem sido estudado por inúmeros estudantes que se preparam para vestibulares de diferentes universidades, nas quais é leitura obrigatória.

“Minha namorada brinca que sou a materialização da 'Pedagogia do Oprimido', do Paulo Freire”, diz. A namorada é a também escritora Dalva Maria Soares, de Belo Horizonte, autora de “Para Diminuir a Febre de Sentir”, publicado pela editora Venas Abiertas. A editora também publicou “Vila Sapo”, livro com seis narrativas curtas de Falero.

“Os Supridores” tem 22 capítulos. “Quando comecei a escrever, tinha fortes razões para acreditar que o número dois era meu número da sorte”, conta. “Foi difícil, mas o rapaz conseguiu vencer a forte vontade de faltar o serviço naquela segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009”, conta o narrador da história. “Sabia que a história tinha que começar no passado. Fui procurar o último dia 2 de fevereiro, que é o segundo mês, em uma segunda-feira, que é o segundo dia da semana, e foi em 2009”, explica.

Na sua crítica, Pécora também considera um “toque machadiano” a “teoria da sopa”, explicada pelo personagem Avelino, o Véio, um traficante de uma das vilas da capital gaúcha.

Véio, que não consegue pronunciar dois “rr” é comparado com Bill, o assassino interpretado por David Carradine, de Kill Bill, filme de Quentin de Tarantino. A “teoria da sopa”, não à toa, tem um quê também de Tarantino, o diretor de cinema preferido do autor.

“Tinha uma época em que assistir a um filme significava assistir a ‘Pulp Fiction’, eu assistia duas, três vezes na mesma semana”, conta, sobre o filme cheio de violência e longos diálogos que soam como monólogos sobre assuntos que parecem muitas vezes triviais.

“Se a tua sopa tá salgada demais agora, eu te aconselho a parar de botar sal, antes de mais nada, para de botar sal e bota água. Depois, pica umas batata e joga ali. Bota umas cenoura também. Chuchu, abóbora, 'macarão'… Sei lá. Vai botando as coisas que tu gosta, entendeu?”, diz Véio.

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