'Dog Days Are Over' vira hino inesperado das festas de Ano-Novo da pandemia

Música indie lançada há dez anos aparece em vídeos de ao menos três grandes eventos no litoral nordestino na virada

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São Paulo

Os dias de cão acabaram. Pelo menos era isso que berravam as multidões que curtiam as festas de Réveillon espalhadas pelo litoral nordestino nesta virada pandêmica, recitando os versos da música "Dog Days Are Over", da banda indie britânica Florence and the Machine.

Em vídeos que pipocaram nas redes sociais na última semana, centenas de jovens dançam e pulam ao som da música, na versão original ou em remixes, em espaços com estruturas dignas de grandes festivais, transformando-a num inesperado hino das festas realizadas apesar da Covid-19.

Multidão canta e dança com música 'The Dog Days Are Over', da banda britânica Florence + The Machine, no evento Reveillon do Gostoso, na praia de São Miguel do Gosto, no Rio Grande do Norte, no fim de 2020
Multidão canta e dança com música 'Dog Days Are Over', da banda britânica Florence + The Machine, no evento Reveillon do Gostoso, na praia de São Miguel do Gosto, no Rio Grande do Norte, no fim de 2020 - Reprodução/Instagram/@brasilfedecovid

A falta de máscaras, acessório obrigatório da nossa atual distopia, poderia até enganar o público desavisado. Mas os registros são dos últimos momentos de 2020 —um ano, é verdade, do cão.

Publicadas pelo perfil Brasil Fede Covid no Instagram e no Twitter, as imagens que circularam foram feitas em pelo menos três eventos diferentes de Ano-Novo. Dois deles aconteceram no Rio Grande do Norte, o Réveillon do Gostoso, em São Miguel do Gostoso, e o Let's Pipa, em Tibau do Sul. O terceiro foi realizado em Barra Grande, no Piauí.

Segundo os administradores do Brasil Fede Covid, que preferiram não se identificar, a música aparece em pelo menos 50 vídeos entre os quase mil conteúdos analisados pelo perfil até o domingo passado (3). Eles afirmam que é de longe a trilha sonora mais comum em registros de festas do tipo, e que a maioria dos vídeos em que ela soa é de eventos no Nordeste.

Os administradores acrescentam que todos os vídeos publicados pelo Brasil Fede Covid são retirados diretamente de perfis de usuários, e que a equipe checa dados de dia, horário e localização antes de postá-los, evitando, desse modo, publicar vídeos de outros anos e fake news em geral.

A assessoria de imprensa do Réveillon do Gostoso confirma que o vídeo foi mesmo gravado lá, na noite de 26 de dezembro —mas ressalta que o uso de máscaras era obrigatório e que após a circulação das imagens a fiscalização se tornou mais rígida, lembrando ainda que o evento tinha autorização para acontecer e exigiu exames dos participantes.

A reportagem tentou entrar em contato com a organização do Let's Pipa, mas não teve retorno. Já a festa de Barra Grande do Piauí não pôde ser mapeada, uma vez que a praia iria receber o Réveillon das Emoções, que foi cancelado.

Lançado em 2008, "Dog Days Are Over" foi o segundo single do álbum de estreia da banda Florence and The Machine, "Lungs". Em 2010, a música foi relançada e ganhou um novo clipe, mais bem produzido. Juntas, as duas versões do vídeo têm mais de 156 milhões de views no YouTube.

Difícil de encaixar em um gênero musical, mas queridinha do público indie, a composição combina sons de harpa, tambores e palmas para criar o clima festivo para uma letra sobre a chegada avassaladora da felicidade (o primeiro verso diz algo como “a felicidade a atingiu como um trem”). O resultado é pura catarse.

Hit certo nas baladas de indie rock que animavam a noite no começo dos anos 2010, sua entrada nas caixas de som ganhava tons ritualísticos nas pistas. "Toda vez rolava essa coisa de baixar a luz na hora que a música fica mais lenta, para depois aumentar o grave na hora em que ela anima de novo. E aí era sempre uma catarse, o povo gritando, jogando bebida pro alto", conta o DJ e jornalista Alexandre Bezzi, que foi residente em clubes como Funhouse, Yatch e D-Edge, em São Paulo, na época.

Até hoje a composição aparece nos set lists, conta Sérgio Oliveira, o Sérjô, DJ no Sputnik, no centro de São Paulo. Mas com outra conotação, pelo menos na pista. "Virou uma coisa meio de fim de festa", ele diz. É claro que há quem curta, mas agora muita gente que entende como uma despedida.

Oliveira diz que a música pode ter tudo a ver com um êxtase pós-pandemia, "mas ainda é cedo para comemorar e celebrar".

Já Bezzi avalia que a canção pode ser considerada um sucesso justamente por não ter ficado restrita a um nicho único —tanto é que virou a estrela dessas festas de Ano-Novo, bem distantes do universo indie.

"Mas se eu fosse a Florence [Welsh, vocalista e líder da banda], ficaria extremamente constrangida de as pessoas estarem usando essa música para celebrar uma ilusão. O vírus está aí ainda", ele afirma, lembrando os 200 mil mortos pelo vírus no país.

É possível que essa fosse mesmo a posição da cantora caso soubesse que sua música está animando festas com turbas de baladeiros em plena pandemia. Em abril de 2020, ela declarou que doaria todo valor arrecadado com sua canção recém-lançada "Light of Love" para o fundo da The Intensive Care Society Covid-19, de apoio aos profissionais de saúde do Reino Unido, e incentivou os fãs a fazerem o mesmo.

Ela também publicou um poema escrito coletivamente a partir de comentários do público sobre a vida na quarentena.

Colaboraram Carolina Moraes e Lucas Brêda

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