Versos racistas de hinos estaduais, sobre escravos e índios, detonam protestos

Canção gaúcha diz que povos escravizados não têm virtude, enquanto a paulista glorifica domar indígenas

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São Paulo

Da mesma forma que estátuas pelo país homenageiam bandeirantes e escravocratas, algumas letras de hinos estaduais exaltam essas figuras e também têm versos racistas. Em estados como o Rio de Janeiro e Santa Catarina, no entanto, as canções oficiais apresentam trechos antiescravistas.

Um exemplo do primeiro caso é o hino do Rio Grande do Sul, que detonou esse debate no primeiro dia do ano. Vereadores de Porto Alegre, todos em primeiro mandato e negros, permaneceram sentados quando o hino tocou durante a cerimônia de posse como um protesto contra os versos racistas.

“Mas não basta, para ser livre/ Ser forte, aguerrido e bravo/ Povo que não tem virtude/ Acaba por ser escravo”, diz o trecho que motivou o protesto.

“As pessoas que advogam que isso tem um conteúdo racista, com as quais eu concordo, dizem que esse escravo estaria associado a uma pessoa sem virtude, quase seria uma não pessoa pelo falta da virtude”, afirma Luiz Alberto Grijó, professor do núcleo de história na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

No hino de Alagoas, os escravos também aparecem com uma conotação que pode ser entendida como racista. A canção diz que o estado “não procria escravos/ “vence ou morre!/ mas sempre de pé!”.

“A construção desses símbolos no Brasil sempre expressaram a ideologia de classes letradas e, em um certo sentido, dos detentores de poder. Os hinos, as bandeiras, a construção de heróis no Brasil teve uma participação popular nula”, diz Amailton Magno Azevedo, professor do departamento de história da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Monumento às Bandeiras, escultura de Victor Brecheret na zona sul de São Paulo
Monumento às Bandeiras, escultura de Victor Brecheret na zona sul de São Paulo - Folhapress

É por essa falta de participação popular, segundo Azevedo, que aparecem com tanta frequência expressões preconceituosas e racistas nos signos que constroem a ideia de nação. Ele dá como exemplo o caso da bandeira da cidade mineira de Ouro Preto, que dizia “precioso ainda que preto” e foi alterada em 2005.

Outros hinos estaduais também exaltam figuras de bandeirantes, igualmente homenageadas em estátuas que foram alvo de críticas no ano passado.

Na canção paulista, que evoca uma “São Paulo das bandeiras”, ele “avança e investe” de norte a sul, de leste a oeste e então "doma os índios bravios". No Piauí, foi a aventura de dois deles que “a semente da pátria nos traz”. “Nós, os bandeirantes de Rondônia/ nos orgulhamos de tanta beleza”, diz a letra rondoniense.

“Esses homens pertencem todos a nossa elite. Por consequência disso é que se formam hinos de louvor aos bandeirantes e aos Farrapos [no caso do Rio Grande do Sul]”, diz o historiador Euzébio Assumpção.

“São o imaginário de um pensamento da época que passa por décadas e décadas e vem até os dias de hoje. O que eles representam de fato? O pensamento dominante de uma elite”, defende ele, que lembra que pelo menos desde a década de 1970 se discute o racismo nos versos do hino do Rio Grande do Sul.

Azevedo, para quem a discussão lembra o debate sobre a retirada de estátuas que aconteceu com força no ano passado, diz que ter uma figura como a do Borba Gato homenageada em São Paulo, por exemplo, obrigou a população a lidar “com a evocação dessa memória única, exultante, orgulhosa, do bandeirante paulista, em detrimento de outras memórias que também habitaram e continuam habitando a cidade de São Paulo, como as memórias indígenas, negras, como parte fundamental”.

O Brasil das matas exuberantes e das belezas naturais também não escapa dos versos das canções oficiais, mas, em contrapartida às letras que homenageiam escravocratas, há trechos antiescravistas em alguns estados do país.

“Fluminenses, eia! Alerta!/ Ódio eterno à escravidão!/ Que na pátria enfim liberta/ brilha a luz da redenção!”, brada o hino do Rio de Janeiro.

Já no de Santa Catarina, a intenção aparece em mais de uma estrofe –“cai por terra o preconceito/ levanta-se uma nação”, “quebrou-se a algema do escravo/ e nesta grande nação/ é cada homem um bravo/ cada bravo um cidadão” e “não mais diferenças de sangues e raças/ não mais regalias sem termos fatais/ a força está toda do povo nas massas/ irmãos somos todos e todos iguais”.

Cristina Scheibe Wolff, professora da Universidade Federal de Santa Catarina, argumenta que essa diferença entre os hinos se dá pelo contexto histórico em que foram feitos. No caso do estado do sul, a letra é resultado de um momento abolicionista que o local vivia.

Os protestos contra os hinos considerados racistas vêm acompanhados de pedidos de mudança dos versos, assim como aconteceu na bandeira de Ouro Preto.

“O hino é uma coisa viva. Ele foi trabalhado ao longo desse tempo todo, recebeu arranjos, coisas foram suprimidas, provavelmente coisas foram colocadas. Nesse sentido, essa parte realmente tem uma conotação racista, é inegável”, diz Grijó sobre a canção gaúcha.

“Estamos vivendo a emergência de uma intelectualidade que está levando para a arena da discussão pública a sua leitura desses elementos da cultura, e isso é fundamental.”

Segundo Amailton Magno Azevedo, o protesto no Rio Grande do Sul acontece num momento propício para essa discussão disparar no Brasil. “O debate que está posto em torno das questões do racismo do machismo, das questões da sexualidade, não permitem mais aceitar ou compactuar com antigos pactos de construção de nação que foram exigidos no passado", diz Azevedo. "Esse debate sobre estátuas, que está correndo o mundo todo, questiona esses signos.”

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