Afrofuturismo floresce nos quadrinhos muito além de 'Pantera Negra'

Safra recorde traz uma nova linha dedicada a ficção especulativa negra e relançamento de títulos de grandes editoras

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Robert Ito
The New York Times

Quando Barack Obama foi eleito presidente dos Estados Unidos, em 2008, o escritor e ilustrador John Jennings viu o acontecido como tão inesperado, tão distinto do curso da história americana, que parecia um acontecimento de um futuro distante.

“Antes daquilo, o único jeito de ver um presidente negro seria em um filme de ficção científica”, ele disse em entrevista por telefone. Jennings comparou o acontecido aos saltos de imaginação que podem ser encontrados nas obras mais avançadas do gênero conhecido como “afrofuturismo”.

Este ano, os fãs do afrofuturismo verão uma safra recorde de quadrinhos e graphic novels, entre as quais os primeiros lançamentos de uma nova linha dedicada a ficção especulativa negra e o relançamento de títulos afrofuturistas de editoras de quadrinhos como a DC e a Dark Horse.

O afrofuturismo, quer em romances, quer em filmes, quer na música, imagina mundos e futuros nos quais a diáspora africana e a ficção científica se entrecruzam.

O termo foi cunhado pelo escritor Mark Dery em 1993 e desde então foi aplicado aos romances de Octavia Butler (“Kindred”), à música do compositor de jazz Sun Ra e, mais recentemente, a filmes como “Corra!” e “Pantera Negra”, que apresentava uma visão esteticamente muito satisfatória de Wakanda, uma nação africana de tecnologia avançada e baseada no “vibranium”.

“O afrofuturismo não é novidade”, disse Ytasha Womack, crítica cultural e autora de “Afrofuturism: The World of Black Sci-Fi and Fantasy Culture”, que serve como um manual e uma história do movimento e de sua estética. “Mas a pletora de quadrinhos e graphic novels disponíveis é certamente uma nova experiência”.

Entre as graphic novels que saíram em janeiro estão “After the Rain”, adaptação de um conto de Nnedi Okorafor, escritora americana de origem nigeriana, e “Infinitum”, uma história de reis africanos e batalhas espaciais, de Tim Fielder, artista radicado em Nova York.

O mês marca o retorno muito aguardado de “Black Panther” aos quadrinhos, com histórias de Ta-Nehisi Coates, que o autor premiado com o National Book Award começou a escrever em 2016, e também o mais recente número de “Far Sector”, uma série escrita por N.K. Jemisin e inspirada pela cantora e atriz Janelle Monáe, sobre a primeira mulher negra a se tornar membro do Green Lantern Corps intergaláctico.

E mesmo trabalhos mais velhos estão ganhando roupagem nova. Super-heróis negros da década de 1990, da editora de quadrinhos Milestone —entre os quais o alienígena Icon, que naufraga na Terra em 1839 e assume a forma de um homem negro— estão encontrando novos leitores no DC Universe Infinite, um serviço por assinatura lançado em janeiro.

Enquanto isso, a Dark Horse, editora de quadrinhos sediada no Oregon, planeja lançar os trabalhos do escritor Roye Okupe, nascido na Nigéria, que antes os publicava independentemente. Os trabalhos incluem a série afrofuturista “E.X.O.”, uma história de super-heróis passada na Nigéria de 2025.

Os quadrinhos são uma mídia especialmente adequada para o afrofuturismo, disse Womack. Muitas narrativas afrofuturistas são não lineares, algo que os quadrinhos, com sua capacidade de mover e empilhar painéis para brincar com os conceitos de tempo, são capazes de transmitir.

Os artistas de quadrinhos também podem empregar elementos visuais como as imagens do Black Arts Movement, ou figuras da mitologia iorubá e ibo, de maneiras que não são possíveis para os escritores de prosa.

“O afrofuturismo está constantemente se movimentando entre o futuro e o passado, mesmo nas referências visuais que os artistas usam”, disse Womack.

“After the Rain” marca o lançamento da Megascope, uma linha de livros da editora Abrams “dedicada a destacar trabalhos especulativos escritos por pessoas não brancas e destinados a leitores não brancos”. O conselho consultivo do selo editorial inclui o acadêmico e escritor Henry Louis Gates Jr.

“O afrofuturismo é só uma maneira de resumir o conceito”, disse Jennings, fundador e curador da Megascope. “Na verdade, se trata de ficção especulativa negra. Mas o termo é longo demais. Só não quero que as pessoas pensem que a Megascope é apenas afrofuturista. Vamos lançar livros de terror, ficção policial, ficção histórica”.

Okorafor, autora do primeiro título a ser lançado pelo selo editorial, “After the Rain”, classifica sua obra como “Africanfuturism”, termo que ela cunhou para descrever uma subcategoria de ficção científica parecida com o afrofuturismo mas mais profundamente enraizada na cultura e na história dos americanos de origem africana. “Nnedi é uma autora muito quente no momento”, disse Jennings, “e por isso achei que seria uma ótima maneira de lançar a série”.

Em abril, a Megascope publicará “Hardears”, uma história de fantasia e aventura que se passa na ilha Jouvert, uma versão de Barbados povoada por criaturas míticas —os gigantescos “moongazers” e os “soucouyants”, que mudam de forma— extraídas do folclore caribenho. “Black Star”, uma história de gato e rato sobre dois astronautas naufragados em um planeta desolado, sai em maio.

Professor de mídia e estudos culturais na Universidade da Califórnia em Riverside, Jennings dedicou boa parte de sua carreira ao afrofuturismo, escrevendo trabalhos acadêmicos a respeito do movimento e conduzindo mesas redondas de debate sobre quadrinhos afrofuturistas.

Ele trabalhou com o artista Stacey Robinson, formando a dupla “Black Kirby”, para reimaginar o trabalho de Jack Kirby, um artista da Marvel, do ponto de vista negro —produzindo, por exemplo, “The Unkillable Buck”, baseado no “Incrível Hulk”.

Para Jennings, o reverendo Martin Luther King era afrofuturista. “O topo da montanha sobre o qual ele falou não existe neste universo”, disse Jennings. “É uma construção imaginária do que o futuro poderia ser”.

Para “Infinitum”, lançado pela Amistad, uma divisão da editora HarperCollins, Fielder criou Aja Oba, um poderoso rei africano que sofre a maldição de viver para sempre.

Oba viaja da África para os Estados Unidos e outros lugares, testemunhando a travessia dos Alpes pelo exército de Aníbal, a ascensão da escravatura nos Estados Unidos, o movimento dos direitos civis e (alerta de spoiler) a morte de nosso sistema solar.

“Infinitum” tem uma qualidade distintamente cinematográfica —as influências de Fielder incluem Ralph McQuarrie, artista gráfico dos filmes “Star Wars”— e as referências e influências compartilhadas entre quadrinhos e filmes devem continuar.

Depois que Coates reiniciar (e encerrar ao fim de três edições) a sua história sobre o Pantera Negra, a Marvel Studios deve lançar “Black Panther 2”, enquanto os produtores da Disney estão trabalhando com a editora de quadrinhos Kugali em “Iwaju”, uma série de animação que se passa em uma versão futurista da metrópole nigeriana, Lagos.

Talvez mais do que qualquer outra coisa, os quadrinhos afrofuturistas sejam uma forma de reivindicar inclusão racial em uma multiplicidade de futuros.

“E não é porque as histórias tratam de temas negros que elas se destinam apenas ao público negro”, disse Jennings. “Eu adoro o Demolidor, mas a Marvel jamais diria que as histórias dele são só para os americanos brancos e pobres, descendentes de irlandeses. Essas histórias são para todo mundo.”

Tradução de Paulo Migliacci

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