Numa entrevista, Joyce Carol Oates disse ter pensado em Marilyn Monroe como sua Moby Dick. Isso explica por que “Blonde”, que se propõe a reinventar a vida da atriz e ícone pop, é um romance tão ambicioso e audacioso.
Embora este seja um pressuposto da ficção, Oates acha importante esclarecer que “fatos biográficos relacionados a Marilyn Monroe não devem ser buscados” no livro. “Blonde”, diz a autora, é “uma ‘vida’ radicalmente destilada na forma de ficção”.
Moby Dick surge, no clássico de Melville, não apenas como um emblema dentro da própria estrutura da narrativa, mas também como um repositório dos medos e rancores de um dos personagens mais fascinantes da literatura, o capitão Ahab. O mesmo acontece em “Blonde”. São raras as passagens em que a voz que assume o controle do relato é mais ou menos impessoal, como um coro que espelha uma espécie de senso comum.
Na maior parte do tempo, Oates brinca com a perspectiva de vários personagens, reais ou inventados, que conviveram com Norma Jeane —dentre os quais um professor, o casal que a acolhe num lar temporário, o primeiro marido, um fotógrafo. A manobra fica ainda mais interessante quando aquela que enxergam, e que no fim das contas ajudam a criar, é a própria Marilyn Monroe.
O grande acerto de Oates é reforçar o fato de que as visões que os personagens têm de Norma Jeane e seu duplo Marilyn apontam, todas, para questões bem mais amplas. Por isso “Blonde” alcança a dimensão que se propõe a atingir.
Uma delas é a imposição da beleza, com toda a carga de misoginia que comporta. “Norma Jeane Baker of Troy”, peça da canadense Anne Carson apresentada pela primeira vez em 2019, também usa a figura da atriz para falar da transformação da mulher em mero objeto de contemplação.
Ainda menina, no orfanato para o qual é mandada depois da morte da avó e da internação da mãe num hospital psiquiátrico, a Norma Jeane de Oates pensa que “a estética tem a autoridade da ética: ser menos do que linda é triste, mas ser voluntariamente menos do que bonita é imoral”.
“Blonde” começa hesitante, mas logo engata um bom ritmo. Oates confere a uma ou outra passagem uma nota um tanto estridente, repleta de pontos de exclamação e adjetivos.
Ao assumir esse que no fim das contas é um tom farsesco, “Blonde” deixa o artifício à mostra —e o faz, de forma consciente, não porque se propõe a reinventar uma vida, mas pela própria vida que se propõe a reinventar, uma vida que já parece cristalizada no imaginário popular e que, por isso mesmo, se revela tão rica quando é utilizada como matéria-prima da literatura.
Vale lembrar que esse tom estridente é, em parte, o próprio estilo de Oates. Mas se trata aqui de um uso lúcido eficiente desse estilo.
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