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O brasil e o mundo em 1921

Bolsonarismo ignora décadas de apoio à cultura no Brasil

Atual presidente instalou o discurso da ferocidade que os arroubos do deputado Daniel Silveira ilustram tão bem

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Dias antes de ser preso, o deputado Daniel Silveira havia publicado uma foto na qual aparece ao lado do secretário especial da Cultura, Mario Frias. “Nosso sorriso representa o nosso deboche para este câncer chamado esquerda, pois vamos desmontar a mamata de vocês”, escreveu, citando o “contingenciamento” de verbas para projetos culturais.

Que Silveira tenha podido comparar a cultura a um câncer e passar despercebido fora do meio cultural é sintomático da assimilação de um discurso repisado desde a campanha eleitoral de 2018.

À altura, Eduardo Bolsonaro bradava “a teta acabou, secou.” A teta era o Estado. E a fonte que ele ameaçava secar era aquela dos recursos públicos destinados a instituições culturais, produtores e artistas.

Obras do artista Evandro Prado que retratam a construção de Brasília
Obras do artista Evandro Prado que retratam a construção de Brasília - Reprodução

Eleito, foi o próprio Jair Bolsonaro quem, se referindo à Ancine, disse que “não tem nada que o poder público tenha que se meter em fazer filmes". "Que tenha uma empresa de filme aqui privada, sem problema nenhum, mas o Estado vai deixar de patrocinar isso aí.”

Mesmo que, historicamente, o Estado brasileiro tenha servido como patrocinador, regulador e produtor de cultura, os bolsonaristas tratam a relação entre governo e artes como se fosse uma invenção da esquerda para moldar as mentes.

O primeiro fio da relação entre Estado e cultura foi tecido no início do século 19, quando dom João 6º criou a Biblioteca Nacional. Mas, apesar de escritores e artistas serem mencionados nas duas primeiras Constituições, de 1824 e 1891, só dois séculos após a instalação da instituição é que as obrigações do governo em relação à cultura foram estabelecidas.

Na Constituição de 1934 estava escrito que cabia aos governos “favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral”. É esse “favorecer” que, quase um século depois, passou a ser tachado de “mamata”.

Em 1935, Mário de Andrade criou, em São Paulo, o Departamento de Cultura da Prefeitura, que procurava enlaçar as manifestações artísticas à vivência da cidade e ao lazer.

No âmbito federal, o primeiro presidente a inserir o investimento em cultura numa lógica mais ampla, ligada à defesa da “identidade nacional”, foi Getúlio Vargas. Com Gustavo Capanema à frente do Ministério da Educação e Saúde, foram criadas diversas instituições, entre elas o Iphan. Quase tudo o que levava ao gabinete de Vargas era aprovado.

Mesmo entre os militares, que censuraram e perseguiram, a cultura conseguiu despertar afetividades e interesses. O marechal Castello Branco dizia que ela era importante para o “desenvolvimento harmonioso do país”. O general Ernesto Geisel se aproximou de intelectuais e artistas, estabelecendo uma política que, sem desconhecer as tensões, deixou algumas marcas.

Geisel dizia que a cultura, “uma expressão do próprio ser humano”, tinha papel “insubstituível” no desenvolvimento. Em seu governo, a Embrafilme, estatal de apoio ao cinema, viveu tempos áureos e foi criada a Fundação Nacional das Artes, a Funarte.

Depois da democratização, a relação entre cultura e Estado foi rompida por Collor. Ele defendia, como Bolsonaro faz hoje, que não cabia ao Estado tutelar a produção cultural. Seu discurso vinha embrulhado no pacote da livre-iniciativa, mas também carregava a ideia das “tetas” e “mamatas”.

Collor dizia ser preciso evitar a “cultura oficial” e entregar aos artistas e empreendedores a política cultural. Entregou uma terra arrasada.

Nessa terra arrasada, foi arada, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, o que seu ministro da Cultura, Francisco Weffort, chamou de uma “parceria com o mercado”, materializada na expansão das leis de incentivo fiscal.

O discurso era de apoio à cultura. A prática foi, sobretudo, de mudança das decisões do âmbito público para o privado. Sob FHC, porém, foi reestabelecido o vínculo direto entre cinema e Estado, com a criação da Ancine, agora na mira de Bolsonaro —ele já declarou ter vontade de “degolar” seus dirigentes.

Nos mandatos de Lula, a cultura ganhou proeminência. Gilberto Gil, ao tomar posse do Ministério da Cultura, ecoou Capanema e definiu a cultura “como o sentido de nossos atos, a soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos”. No período, se ampliou o número de empresas e artistas beneficiados por recursos públicos —quase sempre mobilizados via incentivo fiscal.

Com Bolsonaro, ganhou corpo a interpretação de que o apoio público à cultura era não política cultural, mas cooptação. E foi assim se instalando o discurso da ferocidade que os arroubos do deputado Silveira ilustram tão bem.

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