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Vera Iaconelli

Caso de Lucas no BBB mostra como militância pode ser preconceituosa

Se não refletirmos sobre o que aconteceu, repetiremos com eles a roleta do cancelamento, só modificando os personagens

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Para Freud, os termos manifesto e latente são uma dobradinha de ouro para pensarmos o abismo entre o que professamos em público e nossos deslizes inconscientes. A graça é que, embora ocultemos o latente de nós mesmo, muitas vezes ele fica claramente perceptível para os demais.

Eliminemos da conversa quem, por má-fé, mente deliberadamente e veremos que ainda sobram os donos da verdade, cujos discursos são tão eloquentes quanto o tamanho do seu autoengano. Se, como dizia Freud, a consciência é a ponta do iceberg, eles nada querem saber da base da montanha.

Resta ao inconsciente se manifestar de forma insidiosa e incontrolável. Quem enche a boca para se vangloriar da sua consistência e autocontrole só pode receber da psicanálise um sonoro bocejo.

A indignação que os militantes causaram no Big Brother Brasil 2021, ao se mostrarem tanto ou mais preconceituosos quanto os demais mortais, carece de reflexão. Caso contrário, repetiremos com eles a roleta do cancelamento, só modificando os personagens.

A militância age em bloco e costuma atropelar a voz de cada um em nome de um bem comum. Um bem comum que não tenha espaço de escuta para cada um interessa muito pouco à psicanálise. A ideia de “tudo e todos” nunca foi boa conselheira.

Basta citar o lema do atual desgoverno: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos. Ateus e estrangeiros não são bem-vindos nessa terra abençoada. O dispositivo segregacionista —descrito como lógica dos muros dos condomínios por Christian Dunker em “Mal-estar, Sofrimento e Sintoma”, da Boitempo— se reproduz hoje tanto quanto a Covid-19.

Há pouco tempo caí na besteira de comentar a virulência com que uma página no Instagram tratava um sujeito negro que tinha feito uma piada racista e pedia desculpas. Achei inaceitáveis os termos, a intensidade, e protestei com uma singela frase de desacordo.

A metralhadora mudou de alvo rapidamente e eu passei a ser acusada das piores baixezas por quem nunca havia trocado uma palavra comigo até então. Não havia nenhuma intenção de diálogo no horizonte, apenas uma acusação sem fim, que não visava outra coisa que o prazer de se fazer dono da verdade.

Mas a verdade para a psicanálise é aquilo que escapa nas entrelinhas, na atuação, no sonho, no lapso, caminhos pelos quais se vislumbra o latente. Que delícia acreditar que temos toda essa consistência e certeza, ou ainda, que podemos seguir alguém que a tenha! E de onde vem tanta virulência, se não da ameaça de nos depararmos com o que não sabemos de nós?

Ao sofrermos violências, corremos grande risco de nos identificarmos com o agressor, esperando o momento oportuno para inverter a posição no primeiro que pisar na bola.

O Brasil acompanhou agoniado o ator Lucas Penteado sendo humilhado durante a nova temporada do Big Brother Brasil. A torcida foi para que ele superasse o terror psicológico, em uma situação que por si só é psiquicamente insalubre.

A primeira solução eficiente que ele deu foi um bálsamo para quem torcia pelo jovem: ele apostou em Eros para enfrentar tanta violência. Estava lá o beijo para nos lembrar que podemos fazer coisas melhores com nossas pulsões. Não sucumbir à violência e ultrapassar o muro da intolerância com um beijo! Ah, mas aí já era demais, a casa caiu!

PS: Em tempo, sobre a polêmica da bissexualidade, vale lembrar que Freud em “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, de 1905, já postulava que a sexualidade humana é basicamente bissexual.

Vera Iaconelli é diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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