Cultura há 100 anos era de grandes teatros, cinemas nascentes e música ao vivo

Primeira edição da Folha da Noite já falava de peças de comédia, estreias de filmes e sucessos do chorinho

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Ilustração de J. Carlos

Ilustração de J. Carlos, um dos principais artistas gráficos em atividade nos anos 1920 Instituto Moreira Salles

São Paulo

Já na sua primeira edição, que saiu às ruas há 100 anos, a Folha da Noite dedicava espaço considerável para a cultura, mesmo tendo exíguas oito páginas para falar de tudo.

Em duas colunas encaixadas na aba Diversões, o jornal relatava o que de melhor havia nos salões, circos, cinemas e “theatros” —na grafia da época. Destacava que a nova comédia de Oduvaldo Vianna, pai de Vianinha, “teve o êxito que era de esperar”. “Theatro repleto nas duas sessões. Excellente desempenho de Antonia Pinto, a maior de todas as actrizes brasileiras, apesar dos seus 50 e tantos anos.”

A seguir, a matéria apontava que o music-hall Apollo continuava “a ser o ponto preferido da ‘jeunesse dorée’ paulistana”, ou seja, a juventude dourada daquela cidade recém-urbanizada onde nascia o jornal.

É evidente o contraste, em enfoque e estilo, daquela cobertura nascente —quase dá para ouvir uma trilha de moviola antiga com um narrador empolado lendo o texto— com a desta Ilustrada, que surgiu como um caderno com esse nome 37 anos depois. E também já se percebe como a vida cultural brasileira era radicalmente outra.

Em 1921, as óperas marcavam o território do biscoito fino da elite, os grandes teatros eram anfitriões de pompa para companhias estrangeiras —enquanto a cena popular e operária também avançava às margens da cultura oficial—, os circos eram eventos sazonais que fervilhavam as cidades com expectativa.

Como conta a historiadora Mary del Priore em “Histórias da Gente Brasileira”, a remodelação das cidades durante a República Velha fez com que os lares deixassem de ser o espaço por excelência do lazer. Estávamos num momento de afirmar um novo grau de civilização, segundo ela, por meio da diversão pública e pujante nos bailes dançantes de influência americana, na prática do footing pelas ruas e nas exposições de vanguarda.

E mal havia qualquer meio de difusão cultural em massa. Não precisa nem pensar em traquitanas como televisão e internet —o rádio só faria sua primeira transmissão no país um ano depois, em setembro de 1922.

O disco era ainda uma tecnologia incipiente, com gravações mecânicas de qualidade sofrível e só acessível a quem tinha dinheiro para comprar uma eletrola. É o que lembra Lira Neto, que mergulhou naquele período para escrever “Uma História do Samba”.

“Isso significa que boa parte do que as pessoas escutavam não procedia de uma indústria. Ainda vivíamos num momento em que o improviso e as execuções públicas, em coretos e bandinhas, eram a forma como as pessoas ouviam música.”

As bandas militares, aliás, eram instrumentais para aproximar os gostos das diferentes classes sociais, diz o escritor, já que seus repertórios reuniam desde música clássica até marchinhas carnavalescas.

Estavam na boca do povo os sambas de Sinhô e Caninha e o choro dos Oito Batutas, que, segundo aquela primeira Folha da Noite, fizeram há 100 anos uma audição noturna no salão do hoje extinto jornal Correio Paulistano.

Os Oito Batutas, para quem não sabe, eram o grupo capitaneado por Pixinguinha e Donga, que em 1921 voltou consagrado de uma turnê pelo país e, no ano seguinte, embarcou para a Europa e trouxe na mala uma influência jazzística que mudaria a música brasileira.

Se no geral ainda havia um forte recorte de classe em termos do que se escutava —como diz Lira, “quem tinha uma eletrola não ia comprar disco de samba, mas da música dita erudita”— o mesmo não acontecia com o cinema.

Ver um filme era muito barato nas primeiras décadas dessa arte, segundo o professor Carlos Augusto Calil, que ressalta que o cinema aparecia como uma novidade popular na mesma época da fundação do jornal.

Os estúdios americanos se espalharam pelo país durante a década de 1920 —a circulação de filmes para cá era rápida, porque as companhias controlavam as etapas de produção, distribuição e exibição. “Cada estúdio trazia suas produções, e naquela época os americanos ainda não eram hegemônicos. Havia muito cinema italiano, nórdico, alemão.”

Assim, olhando aquela página de cultura da Folha da Noite, o leitor ficava sabendo que as “casas allemans” trariam “os melhores trabalhos da assombrosa producção germânica actual” e descobria quais seriam as próximas estreias de filmes da “marca Goldwyn”, a empresa que três anos depois se fundiria a duas concorrentes para formar a MGM.

Eram os primeiros passos de uma atividade que agregaria os brasileiros para se informar —com os cinejornais—, para ouvir música ao vivo —orquestras eram comuns nas salas, naquela época em que os filmes ainda não eram falados— e, claro, para se deslumbrar com o talento de figuras como Charlie Chaplin, Rodolfo Valentino e Lillian Gish.

A tal elite intelectual também se congregava nos salões literários, palco dos mais intensos debates e das vanguardas artísticas da época, o mais famoso talvez sendo o do senador Freitas Vale. Artistas de todas as matizes roçavam os cotovelos nesses ambientes.

Os movimentos literários viviam uma espécie de interregno —é significativo que o período seja ensinado nas escolas com a alcunha desdenhosa de “pré-modernismo”—, quebrado por nomes de vulto como Monteiro Lobato, Lima Barreto e Coelho Neto.

E “Juca Mulato”, livro de sucesso do poeta Menotti del Picchia —também jornalista, pintor e, atenção, um dos principais nomes do modernismo— estava divulgando a sua terceira edição, conforme destacava um anúncio na última página da edição que apresentou a Folha da Noite aos seus leitores.

Em 1921, já estava em plena ebulição aquele projeto que o mecenas Paulo Prado, a posteriori, chamaria de um “ensaio ingênuo e ousado de reação contra o mau gosto, a chapa, o já visto, a velharia, a caduquice, o mercantilismo” —a Semana de Arte Moderna de 1922.

Um dos eventos que redefiniriam para sempre a cultura brasileira, a Semana completa um século em fevereiro do ano que vem. Mas aí, bom, já é outro centenário.

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