Descrição de chapéu

Degas visto por Sofia Borges no Masp vira thriller da dor do balé

Mostra expõe choque entre a sensibilidade de um homem do século 19 parisiense e a de uma mulher do século 21 paulistano

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Edgar Degas

  • Quando Dom., ter. e sáb., 10h às 18h. Qua. a sex., 13h às 19h. Até 1º de agosto
  • Onde Masp - av. Paulista, 1.578, São Paulo
  • Preço R$ 45
  • Classificação Livre

Impossível desgrudar os olhos dos olhos ausentes dela. Logo na entrada, numa fórmula recorrente nas montagens do museu, a escultura "Bailarina de 14 Anos" de Edgar Degas está ali em toda a plenitude do bronze e do tecido. Atrás, está uma fotografia em close dela mesma, o rosto torturado pela dor da dança ampliado em escala de outdoor —há uma ambição cinematográfica no Masp em sintonia com toda a voracidade atual.

Ali convivem o plano aberto das galerias de Lina Bo Bardi e suas transparências e o plano fechado em chave pornográfica da obra replicada sem dó.

Escultura 'Bailarina de 14 Anos', do impressionista francês Edgar Degas - Divulgação

Os bronzes de Degas, um dos maiores conjuntos dessas obras no mundo, aqui surgem reinventados pela câmera de Sofia Borges, uma das artistas mais relevantes da atualidade, que constrói mundos em paralelo com as suas fotografias.

Tudo se torna ainda mais áspero iluminado por um jogo de luzes que exacerba os claros e escuros, num quase thriller das agruras das bailarinas naquela Paris de outrora.

O barroco está na ordem do dia. Lá estão as esculturas numa quase penumbra em estantes de cristal e, ao redor delas, os flagras fotográficos acachapantes que se multiplicam. É uma mostra a ser vista por dois filtros —o olhar do impressionista que plasmou as formas doces dessas bailarinas a meio caminho entre a precisão fotográfica e o delírio voyeurista e a visão na contracorrente de uma artista mulher que talvez visse ali um espelho da dor feminina num mundo bastante misógino.

Essas duas visões, sem que uma possa anular a outra, criam um campo de tensões que domina o conjunto das obras, numa das mais poderosas exposições dos tempos da peste.

O ponto principal é a escala. Os famosos bronzes de Degas são delicadas peças que se descortinam diante de nós na altura de uma boneca. São esculpidas a partir do corpo de delicadas meninas, a garota a amarrar a sapatilha, a adolescente a ensaiar um passo do balé, a jovem a se ensaboar ou logo depois de sair do banho.

Borges estoura na obscenidade do grão da fotografia os gestos dessas mulheres, tudo ampliado num grau macroscópico. É a delicadeza vultosa, afrontosa. Suas imagens em close despudorado dessas duras estátuas começam por cortar os pedestais para fora do quadro. Elas então ficam livres, o metal agora elástico como carne, dando um movimento insuspeitado a essas bailarinas que muitas vezes se dividiam entre as coxias da Opéra e a prostituição.

É de um reducionismo talvez injusto ler Degas pelos olhos da lacração das redes sociais. E há extenso debate, como atesta o luxuosíssimo catálogo da mostra organizada por Adriano Pedrosa e Fernando Oliva, sobre as atitudes do artista na Paris do século 19, o quão errado ou não ele foi na sua época. Mas os olhos e a leitura que temos, pelo menos na visão impiedosa de Borges, são os de hoje.

E eles não traem uma potência latente na obra de Degas. Um dos artistas mais atentos ao poder libertador do alvorecer da fotografia, ele mesmo um fotógrafo de primeira hora dessas dançarinas, o francês levou ao extremo ambicioso em suas pinturas e esculturas as formas vaporosas que se desfazem na memória ao mesmo tempo que ainda se estruturam como um fato.

Borges entende isso, mas desarma qualquer erotismo nesse seu olhar. Suas fotografias exaltam o movimento acima de tudo, talvez daí a repetição exaustiva dos closes das meninas sem rosto de Degas. No conjunto, a distância, vemos bonecas magmáticas a ensaiar algo de dança. De perto, são rostos ausentes, fantasmagóricos, à maneira de Rodin ou de Medardo Rosso, que gritam como almas confinadas dentro da matéria.

Há um choque entre duas sensibilidades, a de um homem do século 19 parisiense e a de uma mulher do século 21 paulistano. Enquanto Degas, conhecedor atento da erosão que Rodin encabeçou na escultura moderna, fundiu esse mesmo espírito iconoclasta à escultura fotográfica que fazia então, Borges vai além das limitações dos suportes para lidar em primeiro plano com o anonimato da mulher nessas imagens sem rosto nítido e cheias de fúria sentida.

O único rosto mais reconhecível é o da "Bailarina de 14 Anos". Talvez por isso ele esteja por todas as partes, como se Borges tentasse reforçar algum traço de identidade no anonimato dessas mulheres que se perdem no alvoroço dos vestidos nas poucas pinturas de Degas encaixadas entre as estátuas nas estantes.

Degas, essa mostra evidencia, operou muitas vezes como um diretor de cena. Ele arquiteta o espaço ao redor das mulheres, que se tornam rarefeitas no furor do movimento, as feições do rosto que se perdem no turbilhão da dança.

Então há um ponto cego. Borges não fotografa a "Bailarina de 14 Anos Nua", uma escultura mais desconcertante. Ela lembra sua irmã de saia de tule logo na entrada, mas está despida e escancara um rosto que aqui lembra menos a resiliência diante dos holofotes do palco e mais a tristeza consciente de um abate vindouro. Na prateleira de vidro, ela brilha diante de dezenas menos belas. Nas imagens estampadas pela galeria, ela some.

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