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Ferlinghetti era ícone beat, mas se considerava à margem do movimento

Poeta foi fundamental na divulgação da contracultura americana, cujos efeitos são sentidos até hoje

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Rodrigo Garcia Lopes

Lawrence Monsanto Ferlinghetti, que morreu nesta segunda-feira em sua casa em San Francisco, aos 101 anos, foi um dos maiores poetas e editores americanos da segunda metade do século 20.

Ocasionada por uma doença pulmonar, a morte do poeta e ativista centenário foi anunciada por seus filhos Julie e Lorenzo. É mais uma baixa na geração beat, que perdeu recentemente outros nomes importantes como Michael McClure e Diane Di Prima.

Também pintor de talento, Ferlinghetti esteve na ativa até o fim —há dois anos, publicou o romance autobiográfico "Little Boy". Foi autor de mais de 40 livros, entre ficção, poesia, autobiografia e crítica de arte. "Um Parque de Diversões da Cabeça", de 1958, é um dos maiores best-sellers de poesia da história americana, com mais de 1 milhão de exemplares vendidos.

O escritor e editor americano Lawrence Ferlinghetti em sua City Lights, em San Francisco - Jim Wilson/The New York Times

Mesmo assim, ele contou a este jornal, em entrevista de nove anos atrás, que em nenhum ano de sua vida ganhou "mais do que US$ 10 mil de royalties" pelo livro.

Em 1998, Ferlinghetti foi nomeado poeta laureado de San Francisco, cidade com a qual sua história se funde.

Nascido em Yonkers, no estado de Nova York, em 24 de março de 1919, filho de pai italiano —morto antes de ele nascer— e mãe de ascendência portuguesa, foi criado por familiares. Serviu na Marinha durante a Segunda Guerra Mundial e se formou em jornalismo pela Universidade da Carolina do Norte em 1941.

Trabalhou em alguns jornais e, em 1947, se graduou na Universidade Columbia, em Nova York. Depois seguiu seus estudos em Paris, onde fez seu doutorado em literatura.

Ferlinghetti se mudou para San Francisco em 1951. Dois anos depois, à frente da hoje lendária editora e livraria City Lights —a primeira casa alternativa da costa do Pacífico em seu país—, pôs a cidade no mapa da vanguarda literária, publicando não só os beats mas nomes como Pier Paolo Pasolini, Norman Mailer, Fernando Pessoa, Antonin Artaud, Charles Bukowski, entre outros. A City Lights se tornaria um dos points da geração beat e da contracultura.

Poeta político que propunha a "poesia como arte insurgente", lírico e imagista, foi um nome fundamental na divulgação da literatura beat, publicando Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Diane Di Prima, Gregory Corso, Gary Snyder e Philip Lamantia, por exemplo.

Os beats, como se sabe, foram responsáveis por fazer uma revolução nas letras e na cultura americanas, com impactos sentidos até hoje.

Em 1956, Ferlinghetti publicou "Uivo", de Ginsberg, e foi processado por obscenidade —ele ganhou a causa, em caso com ampla repercussão no debate sobre liberdade de expressão nos Estados Unidos.
Isso catapultou a fama do livro, um dos maiores sucessos da editora e considerado chave da poesia contemporânea.

Embora fosse considerado um ícone da geração beat, em entrevista concedida a este repórter em San Francisco há exatos 30 anos, ele disse que nunca se considerou um membro do movimento.

Ferlinghetti justificou. "Enquanto os beats estavam fazendo suas loucuras, enquanto eles estavam com o pé na estrada, eu estava em Paris, fazendo doutorado na Sorbonne e morando com uma família francesa. Minhas influências foram muito mais francesas do que americanas."

O fato é que ele foi um dos responsáveis pela abertura e pela descompressão da poesia americana nos anos 1950, assimilando autores como Guillaume Apollinaire, Jacques Prévert, Pablo Neruda e os surrealistas e publicando obras que representavam uma reação ao formalismo então dominante nas letras.

Na mesma entrevista de 1991, ele alertava sobre a situação do planeta de forma visionária. "Esta questão ideológica não vai fazer nenhuma diferença daqui a alguns anos. Em 50 anos, digamos, a situação ecológica vai estar tão grave que conceitos como ideologia vão ter de sofrer uma mudança radical. Será necessário um novo conceito de ideologia que não vai ter nada a ver com o da velha terminologia e retórica marxistas."

Ele previa migrações em massa de populações inteiras pelo mundo, que invadiriam países ricos à procura de abrigo e comida. "Isso já está começando a acontecer. Mesmo o conceito de nação, como entendemos hoje, não vai mais existir. Não há nem mesmo razão para acreditar que os Estados Unidos vão existir para sempre. As fronteiras já se tornaram obsoletas."

A lógica levaria à conclusão de que o capitalismo industrial, na concepção deste autor que sempre teve forte viés revolucionário de esquerda, era um desastre não só para o ser humano, mas para a Terra.

"O ideal seria alguma forma de socialismo humanitário que controlasse os problemas ambientais do planeta, mas isso não vai existir enquanto tivermos uma estrutura corporativista. Mesmo porque eles são imbecis demais para se salvarem de um eventual desastre ecológico."

A editora 34 prevê a publicação de duas obras de Ferlinghetti ainda inéditas no Brasil. "Poesia como Arte Insurgente", com tradução de Fabiano Calixto, será lançado em abril. E, ainda neste ano, sai uma antologia com 101 poemas selecionados do escritor, a mais robusta já publicada até aqui.

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