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Cinema

Jean-Claude Carrière foi muito mais do que o roteirista de Buñuel

Para ele, que colaborou ainda com Godard, Peter Brook e Milos Forman, glória era menos importante do que ensinar

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A melhor definição do roteirista Jean-Claude Carrière talvez seja a do diretor espanhol Fernando Trueba: “Era uma árvore imensa, mas não deixava ninguém na sombra”. Bem ao contrário. Embora a fama de “o roteirista de Buñuel” continue a marcá-lo mesmo depois de sua morte —nesta semana, aos 89 anos—, basta passar em revista a lista dos cineastas com que colaborou para notar que Carrière foi muito mais do que isso.

Já que hoje o prêmio que conta é o Oscar, vamos começar por ele. Em 1962, quando começava a carreira, ganhou o prêmio de melhor curta-metragem por “Feliz Aniversário”, que dirigiu e escreveu com Pierre Étaix.

Também com ele escreveu “O Pretendente”, do mesmo ano, filme que lançou Étaix como o sucessor de Jacques Tati ao posto de grande comediante do cinema francês —coisa que não aconteceu, consta que devido à timidez excessiva de Étaix.

Mais Oscar? Ganhou um, honorário, em 2015. Não os exibia na prateleira da sala. Ficavam guardados num armário. E nem no armário ficou a indicação que recebeu e recusou para a Academia Francesa. Seria um contrassenso. Afinal, não foi ele a alma gêmea de Luis Buñuel desde que, juntos, adaptaram “Diário de uma Camareira”, o livro de Octave Mirbeau, em 1964? A colaboração entre os dois nunca mais cessou, de “A Bela da Tarde”, em 1967, até “Esse Obscuro Objeto do Desejo”, em 1977.

Não era apenas uma proximidade profissional. Em Buñuel, Carrière encontrou uma espécie de irmão mais velho, capaz de o acompanhar e mesmo guiar pelos caminhos do surrealismo, que já seguia. Mas Buñuel era um pouco mais que isso: era o surrealismo em pessoa. Embora já afastado do grupo de André Breton, sempre permaneceu fiel ao espírito libertário do movimento.

Os filmes que o roteirista e Buñuel escreveram juntos falam por si. O humor, o sarcasmo, a irreverência, o desfazer da burguesia e seus hábitos atravessam esses filmes. Assim como o desejo, aquilo que vai para onde bem entende, não para onde quer que vá a razão.

Mas Carrière não limitou seu trabalho à colaboração com Buñuel, nem seu pensamento ao surrealismo. Que o digam os dez anos que dedicou a “Mahabharata”, a epopeia que realizou com Peter Brook. A lista de colaboradores pode começar com Brook ou com Jean-Luc Godard, Milos Forman, Louis Malle, Hector Babenco, Volker Schlondorff. E não acaba mais. “Ele não buscava a glória, é como se ela viesse apesar dele”, comentou Brook.

E a glória, para ele, era infinitamente menos importante que os ensinamentos que podia transmitir. Vejamos um só, que o ator Louis Garrel citou no jornal Libération. Garrel estava com problemas em uma cena de seu primeiro filme como diretor, em que havia dois personagens. “Se há dois personagens em cena e não está funcionando, acrescente um terceiro personagem, que ouve a conversa”, sugeriu Carrière. Simples, direto e eficiente.

Era assim também com seus alunos da Fémis, escola de cinema francesa que substituiu o antigo Idhec, Instituto de Altos Estudos Cinematográficos, que chegou a dirigir. Mas não só. Por onde andava fazia conferências sobre roteiros e roteiristas.

Alguns de seus ensinamentos são memoráveis. Dizia, por exemplo, que um personagem se define pelos seus gestos, não por palavras. Ou que todo roteirista deve saber o bastante de cinema para que, ao escrever, possa imaginar o desenvolvimento da cena já transformada em imagem, com seus planos, luzes, atores e cenários.

O roteirista deve ser humilde, pensava (e dizia). Seu texto não é senão um estágio intermediário de algo que surgirá e cujo sentido será definido pela imagem, portanto pelo diretor. O roteirista que quiser ser autor deve buscar outro caminho. O romance ou, como o próprio Carrière, o teatro.

É ainda Louis Garrel que comenta que o homem que conheceu 12 anos antes da morte era uma enciclopédia ambulante e dono de uma memória prodigiosa. Mais do que tudo, alguém que parecia amar algumas questões específicas do roteiro: o que contar, a quem e como. As questões valiam tanto para os cineastas que o visitavam, quanto para os estudantes que ensaiavam seus primeiros trabalhos.

Carrière era isso para isso para todos, inclusive jornalistas, alguém cuja curiosidade se igualava à generosidade. Quem passava por sua casa, no nono arrondissement (ou distrito de) Paris, diz que seu entusiasmo nunca diminuiu com a idade. Nem o prazer de ajudar e o cuidado de nunca fazer sombra, com seu enorme talento e seus conhecimentos, a quem o procurava.

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