Mostra de fotógrafo acusado de assédio sexual detona debate sobre MeToo na arte

O americano Nicholas Nixon, que diz ter forçado a barra com mulheres, tem retrospectiva no Instituto Tomie Ohtake

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'Bebe, Cambridge, 1980', fotografia do americano Nicholas Nixon Coleções Fundación Mapfre/Divulgação

São Paulo

Um dos mais importantes fotógrafos americanos da segunda metade do século 20, Nicholas Nixon dava aulas consideradas por ele um pouco arriscadas.

Certa vez, ele conta, sugeriu a um aluno homem interessado em imagens provocantes que fotografasse uma vagina, e, a uma estudante mulher, que registrasse um pênis. Também dedicou um horário inteiro a conversar sobre a palavra “boceta” com a turma.

Nas mais de quatro décadas em que lecionou na universidade MassArt, em Boston, o fotógrafo conhecido por seus retratos de pacientes de Aids raquíticos e pela série “As Irmãs Brown” nunca recebeu reclamações, ele afirma. Até o momento em que uma fiscal da instituição e uma repórter do jornal The Boston Globe descobriram que alguns alunos se sentiam incomodados com seu método de ensino.

As reclamações viraram uma reportagem bombástica no jornal, um dos principais dos Estados Unidos, na qual mais de 12 ex-alunos acusavam o artista, à época com 70 anos, de comportamento inapropriado e assédio sexual.

Segundo a reportagem, Nixon pedia aos alunos que posassem total ou parcialmente nus para ele. Numa ocasião, também teria proposto aos estudantes analisarem uma foto de seu pênis.

Quando a reportagem foi publicada, em abril de 2018, o Instituto de Arte Contemporânea de Boston expunha uma retrospectiva do fotógrafo. A direção do museu decidiu manter a mostra em cartaz, alertando os visitantes da polêmica, mas o próprio Nixon afirma que pediu que ela fosse fechada, dez dias antes da data prevista, devido à uma série de reclamações dos funcionários da instituição.

Agora, uma mostra com parte das fotos exibidas em Boston e mais dezenas de imagens acaba de entrar em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.

As 181 fotografias, a grande maioria em preto e branco, repassam a trajetória de Nixon, desde os cliques das paisagens silenciosas do estado americano do Novo México, no início da carreira, quando começou a usar uma câmera de grande formato —sua marca registrada—, até as imagens hiperdetalhadas dos telhados de Boston, a partir dos anos 2000.

Uma sala inteira é dedicada à sua obra mais célebre, “As Irmãs Brown”, na qual registrou, uma vez por ano e sempre na mesma posição, sua mulher, Bebe, e as três irmãs dela, entre 1975 e 2018, evidenciando a passagem do tempo nos rostos.

Há também uma série de casais se beijando, em momentos íntimos, e closes de partes do corpo, como peitos masculinos e o pescoço do fotógrafo, onde se vê sua barba com nitidez impressionante, graças ao uso do negativo em grande formato.

Nixon, que já teve sua obra mostrada nos principais museus do mundo, afirma adorar o corpo e conta que era a favor de que seus estudantes fotografassem uns aos outros nus, se quisessem. Também instigava os alunos a serem corajosos e se arriscarem, já que as imagens mais interessantes vêm de um lugar desconhecido, diz. “Minhas aulas tinham as melhores fotografias.”

Embora debater sobre os genitais seja comum em cursos de artes plásticas, assim como modelos posarem nus para serem pintados ou retratados, Nixon afirma ter errado ao tratar os universitários como jovens fotógrafos maiores de idade, e não estudantes. “Forcei demais a barra com algumas mulheres, eu sei disso agora, e sinto muito.”

Durante a apuração da reportagem do Boston Globe, o fotógrafo decidiu se aposentar de seu cargo de professor. Na mesma época, a MassArt anunciou a abertura de uma investigação à luz de uma lei federal de 1972, que engloba assédio sexual e proíbe a discriminação de gênero. Questionada sobre o andamento do caso, a universidade não se manifestou.

A exposição em São Paulo é feita a partir do acervo da Fundación Mapfre, em Barcelona. O Tomie Ohtake afirma, por meio de sua assessoria, que avaliou as acusações publicadas pelo Boston Globe e que estas se referem ao trabalho de Nixon como professor e, “por não haver desdobramentos formais posteriores, qualquer juízo seria antecipado”.

Além disso, “não houve nenhuma acusação sobre o modo como as fotografias em exposição foram produzidas, muitas delas resultantes de acordos éticos e humanos delicados”, diz a instituição. Por fim, ressalta que a mesma mostra foi exibida na galeria C/O, de Berlim, depois de Boston, e que as imagens seguirão de São Paulo para a House of Photography, em Budapeste, e então para a Fundación Mapfre.

A vida do fotógrafo mudou muito depois da reportagem. Ele passou a ser tachado de pervertido, afirma, e a se sentir rejeitado. Por outro lado, acrescenta que o episódio o deixou mais humilde e fez dele um melhor marido e pai.

Na era do movimento MeToo, acusações contra grandes nomes da arte pautam a sociedade civil e os museus, e o resultado extremo pode ser o cancelamento de artistas com décadas de carreira. O francês Claude Lévêque, por exemplo, conhecido por suas instalações em néon, passa por um processo de apagamento depois de ser acusado de abusar sexualmente de menores de 15 anos, numa reportagem no jornal Le Monde.

Duas regiões na Grande Paris decidiram, no fim de janeiro, remover trabalhos públicos seus, e um museu em Genebra anunciou que não mostrará mais a sua obra. Outras instituições, incluindo a Opéra Garnier, que exibe um controverso par de pneus de ouro do artista, ainda não revelaram o que farão. Lévêque nega as acusações.

Em Nova York, o MoMA —que abrigou uma das primeiras mostras de Nixon, em 1976— também está numa saia justa. Curadores e artistas encamparam há poucos dias uma grita pedindo a saída de Leon Black do conselho do museu.

Segundo o New York Times, o bilionário pagou US$ 158 milhões, ou cerca de R$ 865 milhões, para Jeffrey Epstein, um ricaço acusado de tráfico sexual de menores que se suicidou na cadeia em 2019. O museu ainda não se manifestou.

Nicholas Nixon - Coleções Fundación Mapfre

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