Por que telas aflitas de Van Gogh não têm a ver com loucura ou orelha cortada

Em livro inédito, crítico Rodrigo Naves diz que explicar obra do pintor como fruto de uma 'alma torturada' é empobrecedor

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São Paulo

Num certo momento do filme “Sede de Viver”, Vincent Van Gogh, vivido por um Kirk Douglas de barba e cabelos tingidos de ruivo, parece estar à beira de um surto.

Trôpego, encara o próprio rosto no espelho, uma lâmina de barbear nas mãos. Até que seu reflexo desaparece. Ouvimos um grito fora de quadro. Quando ele ressurge, sua orelha está coberta de sangue.

Todos os estereótipos associados ao pintor holandês, morto aos 37 anos, em 1890, estão ali no filme de Vincente Minnelli de 1956 —o desespero, o sofrimento psicológico, o ímpeto de automutilação.

Não é como se fossem traços distantes da personalidade do artista na vida real, diz o crítico de arte Rodrigo Naves —embora, ele acrescenta, não só a hipótese de que ele se suicidou esteja sendo cada vez mais posta em xeque por pesquisadores, como uma dupla de historiadores alemães disputa o fato de que foi ele que decepou seu lóbulo esquerdo. Segundo eles, o responsável pela lesão foi o pintor Paul Gauguin, com quem Van Gogh vivia naquela época.

De todo modo, são clichês que empobrecem a obra de um dos autores que ajudaram a definir a arte moderna. Afinal, afirma Naves, é como se toda a trajetória do holandês, que pintou a maioria de suas obras-primas nos últimos anos de vida, fosse descartada e seu talento fosse entendido como inato, “uma mangueira que dá mangas”.

“Que ele tinha problemas psicológicos, parece inegável. Mas é impossível que não tivesse também grandes períodos de lucidez, pintando com aquela qualidade. As cartas dele são de um esclarecimento tocante”, diz Naves, em referência à correspondência regular entre o artista e seu irmão, Theo, publicada por aqui pela L&PM.

Naves, um dos teóricos de arte mais reputados do país, defende uma via diferente de análise no livro que lança agora pela Todavia, “Van Gogh: A Salvação pela Pintura”.

Nele, argumenta que a obra do holandês é mais bem compreendida não a partir de sua “alma perturbada”, mas pela tensão entre carne e espírito, ou entre desejo de materialidade e religiosidade do pintor.

Van Gogh era filho e neto de pastores calvinistas. Chegou a trabalhar como pastor metodista assistente numa região mineradora na Bélgica, em 1879. E seu modo de vida frugal, quase franciscano, não deixa de refletir sua formação cristã, segundo Naves.

É por meio do tema do trabalho que o calvinismo mais marca a sua pintura, porém.

Isso aparece, a princípio, nas representações da rotina dura no campo da sua chamada fase escura, em que predominam os tons ocres, terrosos. Data dessa época “Os Comedores de Batata”, retrato de uma família que o artista conheceu. Mas é também visível nas próprias pinceladas de Van Gogh, que se sobrepõem em camadas grossas numa técnica chamada impasto.

pintura
'Os Comedores de Batatas', pintura de Vincent Van Gogh de 1885 - Reprodução

Naves escreve que, ao contrário dos demais impressionistas com quem Van Gogh conviveu na Paris no final dos anos 1880, para ele “a vida é a dificuldade de viver”.

“O mundo para ele não é fenômeno, e sim a espessura, a carne das coisas. Estou convencido de que foi justamente essa relação difícil com a vida que lhe proporcionou um sentimento áspero do mundo.”

Seria nesse sentido, então, que seus traços transmitiriam a sensação de uma atividade árdua, um trabalho
singular —“uma condenação, algo que não se pode cumprir, sob a pena de deixar de ser uma tela de Van Gogh”, nas palavras de Rodrigo Naves.

“Para os calvinistas, e puritanos em geral, uma maneira de louvar a Deus é pelo trabalho desinteressado, que não busca a prosperidade, riqueza, e sim a disciplina, a fuga da tentação. E tal como vejo Van Gogh, essa é uma tensão no trabalho dele”, afirma o crítico, por telefone.

O conflito pode até ter menos apelo pop do que a pecha de artista genial e atormentado colada em Van Gogh desde os primórdios do seu reconhecimento, póstumo, atingido só início do século 20.

Mas, segundo Naves, ele não é menos relevante para os nossos tempos. Em especial agora, durante a pandemia.

Isso porque, diz o crítico, vivemos uma época em que a vida é quase toda mediada por imagens. A experiência em primeira pessoa teria, desse modo, desaparecido. Ele lembra o 11 de Setembro, que impactou a vida de todos, mas não ao vivo, e sim pela TV.

Na pandemia, porém —e a despeito da multiplicação das telas no período—, voltamos a ter essas experiências em primeira pessoa por causa do luto, acrescenta Naves.

Morreram mais de 200 mil brasileiros por enquanto, é difícil encontrar quem que não perdeu alguém. Além disso, consigo me pôr na pele de quem não respira; vimos isso em Manaus todos os dias. É uma noção de experiência que não é simples, imediata como a picada de uma agulha. E que eu vejo no trabalho do Van Gogh.”

Van Gogh: A Salvação pela Pintura

  • Quando Lançamento nesta sexta (5)
  • Preço R$ 62 (104 págs)
  • Autor Rodrigo Naves
  • Editora Todavia
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