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'Racismo delirante' é tratamento grotesco, Monteiro Lobato merece respeito

Pesquisadora questiona coluna de Marcelo Coelho sobre autor brasileiro

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Ana Lúcia Brandão

Crítica literária especializada em literatura infantil e juvenil, é doutora em comunicação e semiótica pela PUC-SP

O artigo de Marcelo Coelho nesta Folha, classificando Monteiro Lobato como “tremendamente, monstruosamente, escandalosamente racista —um racista delirante” deixou a mim e a todos os estudiosos de sua obra literalmente escandalizados.

Para quem não me conhece, sou especialista em literatura infantil e juvenil, ensaísta, resenhadora crítica da "Bibliografia Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil" (SMC – PMSP) e do Uol Educação, doutora em comunicação e semiótica pela PUC-SP e membro do grupo de Estudos em Cultura e Literatura para Crianças e Jovens da USP. Trabalhei na Biblioteca Infantil Monteiro Lobato por três décadas.


Tenho, pois, a minha vida dedicada a Lobato e sei que a vida e a obra deste grande escritor são um verdadeiro jogo de espelhos, que exige muito fôlego e capacidade de discernimento dos que desejem opinar sobre ela ou sobre o escritor. Sugiro aos que desejem se aventurar a conhecer esta vida tão intrigante a leitura da maior e mais completa biografia já escrita sobre ele, realizada por Edgar Cavalheiro (dois volumes).

Quanto à primeira das duas questões apontadas de maneira extensa e pouco representativa, ao meu ver, no artigo de Marcelo Coelho, para justificar sua acusação de “racismo delirante” em Lobato, tenho a pontuar que a obra “O Presidente Negro” destoa em muito do restante da obra adulta de Lobato, no geral marcada por contos curtos, incisos e por vezes plenos de humor e ironia. Para completar o quadro, trata-se de um romance de ficção científica incipiente, gênero que ele não dominava enquanto escritor.

Através do diálogo de três personagens, Lobato aborda neste livro a questão do racismo, da miscigenação e da eugenia, que estavam fortemente em pauta nos Estados Unidos, na década de 1920, a ponto de haver ou não pureza racial ser considerado por muitos como a razão para o progresso ou para o atraso de um país.

O livro fez um verdadeiro raio-x da questão racial nos Estados Unidos, tão grave a ponto de levar, nesta ficção, a um verdadeiro “choque de raças”, aliás o título original que Lobato deu ao livro. Porém, ao contrário do que entendeu erroneamente, Marcelo Coelho, Lobato não encampa para si, como autor, nenhuma fala racista de qualquer personagem do livro.

Apenas expõe, com muita ironia, os argumentos racistas dos personagens. E revelando como a sua visão, como autor, era totalmente contrária ao racismo, no final do livro Lobato antecipa o que seria a grande “vingança” dos negros americanos: a eleição de um presidente negro para os Estados Unidos. Algo tão inimaginável quanto escandaloso para os brancos naquela época, a ponto de Lobato ter datado este sonho no ano de 2228. Lobato anteviu Obama em 2009, errando só na data, antecipada em 219 anos pela história real. “Mais do que um livro em prol da pureza racial, este romance constrói uma metáfora sobre segregação e aculturação”, escreveram Márcia Camargos e Wladimir Sachetta na abertura da reedição do livro, de 2008.

Quanto à carta de Lobato “elogiando” a Ku Klux Kan, segundo argumento de Marcelo Coelho para provar “o racismo delirante de Lobato”, ela é uma “única” que aborda esse tema entre os dois volumes de cartas escolhidas, que vão de cartas escritas entre 1895 a 1948, destinadas a setenta e quatro correspondentes, dentre os quais encontramos parentes, amigos, escritores, médicos, políticos, profissionais técnicos no beneficiamento do ferro e da prospecção de petróleo etc.

E esta carta me parece inconsistente frente ao todo de sua saborosa correspondência. Importante ressaltar que são volumes com cartas de foro íntimo. Quem não as tiver escrito, inclusive se auto-ironizando, que atire a primeira pedra. Fosse o tempo de hoje, elogiar a Ku Klux Klan numa rede social, para um intelectual com senso de humor, seria boa resposta, tipo "KKK", a um amigo dizendo que não irá tomar a vacina chinesa “para não virar jacaré”.

Levar ao pé da letra palavras ou frases de uma mensagem pessoal entre amigos, para classificar um deles como “racista” revela uma enorme incompreensão do que significa a crítica literária. Aliás, no prefácio do primeiro volume de cartas, Edgar Cavalheiro aponta que estes dois volumes estão longe de representar um décimo da sua produção no gênero. Cavalheiro então cita Antônio Cândido —que aponta o gênero epistolar como raro na produção literária brasileira— e afirma que ”temos um pudor irremediável, um inexplicável sentimento de inferioridade ante o público”. Cavalheiro termina seu prefácio dizendo: “os volumes que ora incorporamos às 'Obras Completas' constituem subsídio inestimável para a compreensão do homem e do escritor que ele foi. (...) Nada do grande homem é sonegado nestas cartas”.

Agora é momento de nos concentrarmos na questão do racismo, que vou abordar sob o ponto de vista estético, literário e do humor, o humor caricatural, do qual o grupo Porta dos Fundos é um grande exemplo atual e do qual Lobato, se descesse numa mesa branca, iria querer assistir e dar suas gargalhadas.

A obra infantil de Monteiro Lobato, que apresenta 17 volumes, foi ilustrada por vários artistas. Um deles, a quem Lobato delegou a criação visual de seus personagens, foi Belmonte. Benedito Barros Barreto é o nome deste ilustre homem negro, conhecido como Belmonte, que Lobato convidou para ilustrar sua obra. Belmonte foi um grande chargista e como todo chargista sempre exagerou nos traços das personagens, realçando-lhes ao extremo as suas características físicas a ponto de tirar risadas de seu público com sua crítica mordaz e hilariante.

Gonçalo Junior, na sua biografia sobre Belmonte, conta como Lobato o incentivou a criar seus próprios personagens infantis, que apareceram na Folha da Manhã e se chamavam Bastinho e Bastião, um branco e outro negro, amigos inseparáveis, que com a ajuda da magia de um saci, partem para as aventuras, na série chamada “As Viagens Fantásticas de Dois Garotos”.

Ora, um “racista delirante” nem ao menos dirigiria a sua atenção a um homem como Belmonte, não é mesmo? Portanto, vale pontuar que entre 1929 e 1937, Belmonte ilustrou cinco livros da saga do "Picapau Amarelo". De Belmonte a Alcy Linnares, tia Nastácia mantém seus traços. Um caso a se pensar —a força e acalanto da imagem da mulher negra no nosso imaginário.

Como sou literata de formação e atuação profissional, acho necessário apontar a linguagem humorística criada por Lobato para parte de sua obra adulta e para a infantil como um todo. A linguagem criada por ele é prenhe de rebeldia e criatividade inusitadas e utiliza-se largamente de um registro coloquial e tom de oralidade capazes de surpreender até hoje o leitor, por ser lúdica e original ao extremo.

Portanto, a obra infantil de Monteiro Lobato é modernista em essência e justamente por isso, por registrar a oralidade da época em que foi escrita, Lobato hoje é criticado ao extremo. Ora, entra aí a presença do mediador de leitura, quem lê com a criança, que naturalmente revela o contexto de época do escritor e da obra.

O "Sítio do Picapau Amarelo" é uma criação que põe em diálogo o universo da cultura oral brasileira representada com maestria por Tia Nastácia, tio Barnabé (com quem Pedrinho e as demais crianças obtêm todo o conhecimento sobre a mata e seus animais e plantas) e claro, o ser mais mágico desse universo oral que é o Saci. Tia Nastácia é a deusa que criou a boneca Emília e o Visconde de Sabugosa, os dois encantos que vivem as aventuras do sítio e fora dele.

Dona Benta representa a cultura escrita e por vezes formal, sempre rechaçada pela boneca Emília e pela cultura brasileira como um todo. A riqueza da voz do povo que se exprime por meio da oralidade é de um virtuosismo lingüístico, literário e simbólico muito grande. Já dizia a escritora Sylvia Orthof sobre Tia Nastácia, que a encantou desde criança: "Sempre imaginei Tia Nastácia como uma noite estrelada”.

Se há algo que Emília não suportava era a injustiça. E eu, como Emília, afirmo que Monteiro Lobato não foi um “racista delirante”. Foi um homem do seu tempo, um humanista que realmente realizou o projeto de formar um país de leitores, mas que como toda personalidade ousada e visionária, eternamente provocará impasses e novos questionamentos. Este é o papel de toda obra clássica de uma determinada cultura.

Mas Lobato foi também um homem que foi preso por querer que o governo explorasse suas riquezas e deste modo proporcionasse educação e bem-estar para o povo e que teve a coragem de denunciar a tortura no auge do Estado Novo. Por tudo que representa, Monteiro Lobato tornou-se memória e marca indelével na cultura brasileira e não merece nem de longe um qualificativo tão injusto e deletério como este de “racista delirante”, colocando, como no “index” da Inquisição, ele mesmo e toda sua obra, inclusive e especialmente a infantil. Vida longa para a obra de Monteiro Lobato!

Erramos: o texto foi alterado

O autor do livro "Belmonte: Vida e Obra de um dos Maiores Cartunistas Brasileiros de Todos os Tempos" (Três Estrelas) chama-se Gonçalo Junior, e não Gonzalo. O texto foi corrigido.

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