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Livros Folha, 100

Toni Morrison, que faria 90 anos, nos seduz com seu brutalismo poético

Primeira escritora negra a vencer o prêmio Nobel de literatura se firmou na história pela beleza angustiante de sua obra

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A escritora Toni Morrison, em retrato de 2017 Damon Winter/The New York Times

Conceição Evaristo

Escritora brasileira, autora de 'Ponciá Vicêncio'

Uma vez escutei uma afirmação cujo significado não entendi logo. Uma pesquisadora de literatura fazia alguns comentários em relação a um livro que estava tendo um grande sucesso na época. Ela dizia que o autor do referido livro era é bom escritor, excelente até, mas não era um bom ficcionista.

Curiosa, me debrucei sobre a leitura da obra. Impecável. Tudo nos devidos lugares. Os fatos narrados por meio de uma apurada linguagem, os verbos dançando no mesmo compasso dos sujeitos ou vice-versa, nenhuma vírgula desnecessária.

Entretanto, um texto sem criatividade alguma, insosso, estava diante de mim, mas a história narrada era boa para ser contada. Prossegui na leitura, sem que o modo narrativo me apresentasse qualquer jogo de sedução, confirmando que não basta ter uma boa história para contar, é preciso saber contar, saber construir a narrativa. E a sabedoria da construção, da arquitetura do texto se localiza no âmbito da linguagem.

A literatura de Toni Morrison não sofre da insipidez de quem tem uma história para contar e não sabe narrar. A escritora nos seduz pela engenhosidade na construção dos textos, e muito pela linguagem.

Rosto de mulher negra sorrindo
Escritora Toni Morrison em Paris, na França, em 3 de outubro de 2019 - Patrick Kovarik/AFP

Desde o livro de estreia, "O Olho Mais Azul", publicado em 1970, em que no centro da cena narrativa, está o drama de uma menina negra, Pecola, a escritora nos seduz pelobrutalismo poético” que perpassa toda a sua obra.

Sim, um “brutalismo poético”, termo usado pelo pesquisador Eduardo de Assis Duarte da Universidade Federal de Minas Gerais para ler a minha obra e a quem eu vivo respondendo que esta marca é pertencente a Morrison, do princípio ao fim.

Num episódio, talvez o mais duro narrado no livro "O Olho Mais Azul", em que uma das personagens merece só o desprezo por um cruel ato cometido, a linguagem do texto provoca sentimentos contrários.

Confesso, fui impelida a caminhar junto ao personagem, não para o perdoar, mas por que a narrativa fortemente sugere haver resquício de alguma humanidade no sujeito.

Por meio de um jogo de linguagem, com palavras cuidadosamente escolhidas, o erro imperdoável do sujeito é descrito com tanto cuidado, a personagem é revelada em sua subjetividade tão amarga, que a leitura nos induz a pensar não só no erro do sujeito, mas no próprio sujeito ao tomar consciência de seu brutal ato. Digo sempre que "O Olho Mais Azul", se fosse o único livro de Toni Morrison, pela beleza angustiante da obra, já daria à autora o merecimento do prêmio Nobel de literatura.

A escolha estética e ideológica da escritora em trabalhar as possibilidades da linguagem de maneira tão particular, marcada por um sentido, por uma semântica negra, aparece explicitada por ela própria, no prefácio do livro "Sula", lançado em 1973.

No texto, Morrison diz que, ao escrever "Sula", buscou aprofundar seu experimento na manipulação da linguagem. Pretendeu empregar a linguagem popular, o inglês falado pelas pessoas afro-americanas, sem resvalar para o exotismo e nem para a comicidade.

Tanto em "Sula", a segunda obra da escritora, como nas subsequentes, uma linguagem marcadamente poética põe em suspense o abandono, a solidão dos personagens e a brutalidade das cenas em várias passagens da obra da escritora.

No mesmo livro, há ainda cenas angustiantes de corpos machucados, feridos, levados à morte, mais do que isso, massacrados em suas subjetividades, sujeitos atormentados, tão sós que criam e celebram o "Dia Nacional do Sucídio".

A literatura de Morrison nos oferece as mais dolorosas passagens, construídas de tal forma que a dor das cenas é quase atenuada pela poeticidade do texto, como o relato em torno de uma personagem que, estando presa, busca um espelho para se contemplar e, não tendo o objeto, se olha na água do vaso de sua cela.

E, depois de muito esforço, se enxerga. Vê um rosto preto e sério, e ele sorri feliz. A dúvida, se ele existia ou não, se dissipa. O lugar onde o seu rosto é revelado metaforiza o sentido de invisibilidade e as identidades agredidas dos povos afro-diaspóricos.

"Amada" é mais uma obra de Toni Morrison que me deixa com um sufocante nó na garganta, pois é uma ficcionalização concebida a partir de um fato real.

A escritora conta em seu livro de ensaios "A Origem dos Outros" que encontrou entre os seus guardados um recorte de jornal sobre um fato acontecido em 1856.

Uma longa polêmica envolvia uma mulher escravizada que matara os filhos. No romance, Morrison aprofunda a ideia de que a mãe via no ato a única saída para que sua prole não vivesse a sua mesma condição.

Entretanto, a mulher, Sethe, anos depois se vê perseguida pela presença do fantasma da filha. Uma linguagem também marcada por uma poeticidade característica da escritora percorre todo o relato.

Muito me seduz a obra de Morrison, a fecundidade da linguagem, a subjetividade de suas personagens, a história contada e seus sentidos. O universo negro e as personagens que povoam a ficção da escritora, notadamente mulheres negras.

Escolhi lembrar essas três obras, pois foram essas as leituras iniciais que me puseram no universo criativo da escritora. E ainda se dá pelo fato de que nos estudos de literatura comparada e em outros campos de pesquisa acadêmica, tem sido recorrente a leitura dos livros em diálogo com o romance "Ponciá Vicêncio" de minha autoria.

E assim sigo entre a dor e a poética de Toni Morrison, que fazemos a nossa, lamentando não ter tido a oportunidade de encontrar a escritora, a não ser num breve momento, uma ligeira troca de olhar na Flip de 2006, quando a primeira escritora negra a ganhar o prêmio Nobel de literatura esteve no Brasil, pela segunda vez, entre nós.

Erramos: o texto foi alterado

Sethe é a protagonista do livro "Amada", e não sua filha. A informação foi corrigida.

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