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Vacinação não restringe a liberdade individual, mas a aumenta, diz escritora

Americana Eula Biss, autora do ensaio 'Imunidade', analisa o que move o comportamento antivacina

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São Paulo

Em 2014, a americana Eula Biss já era vista como uma das expoentes do ensaísmo contemporâneo quando publicou “Imunidade - Germes, Vacinas e Outros Medos” (Todavia), livro que pensa a nossa relação histórica com a saúde e a medicina.

Não fazia muito tempo que a escritora tinha dado à luz um menino. Ela investigava com especial atenção os instintos protetivos de pais e mães, que afetavam, por exemplo, a decisão de vacinar seus filhos ou não —algo que não era tido como obviedade em seu círculo social.

Na obra, Biss não exibe desprezo por seus interlocutores resistentes à vacina. Em vez disso, procura entender os aspectos comportamentais e políticos que levam a essa postura.

Agora, ela vê aquelas reflexões ganharem uma relevância insólita. “Quase todos os infectologistas com quem falei mencionaram a probabilidade de uma nova pandemia. Um deles até disse que já tinha passado da hora de acontecer. Soava como alarmismo. Agora não mais”, diz, rindo, na entrevista por chamada de vídeo que concedeu de sua casa, nos Estados Unidos.

Qual é a principal razão pela qual as pessoas resistem a se vacinar?

As razões são múltiplas. Dependem de fatores como onde a pessoa mora, como é a política em seu país, qual é a doença contra a qual se vacina.

retrato de mulher branca de cabelo preso e brincos de argola
Eula Biss, 43, é ensaísta e professora de escrita criativa da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos. Seu livro "Notes from No Man's Land" venceu o prestigioso National Book Critics Circle Award, em 2009. "Imunidade", lançado no Brasil pela Todavia em 2017, foi um dos dez melhores livros de 2014 para o New York Times. Ela acaba de lançar "Having and Being Had", em que reflete sobre relações de propriedade e privilégios de classe - Divulgação

Só para citar alguns exemplos. A vacina contra o HPV é muito efetiva para prevenir o câncer cervical. Mas você deve dar às crianças antes que elas se tornem sexualmente ativas. Algumas pessoas resistem porque não gostam da ideia de que seu filho de nove ou dez anos se torne sexualmente ativo, não estão prontas para isso.

E há fatores específicos à política de cada país. Quando eu escrevi o livro, só dois países ainda tinham poliomielite endêmica, a Nigéria e o Paquistão. A resistência à vacina nesses lugares tinha a ver com uma estrutura governamental corrupta, então não conseguiam confiar no governo para cuidar da saúde pública.

Na Nigéria, havia um medo, atiçado pelos problemas sociais de lá, de que os aplicadores de vacina estivessem esterilizando meninas muçulmanas.

Aqui nos Estados Unidos, havia um histórico de ansiedade em relação à maneira como o sistema médico interagia com as mulheres. Aquelas com quem falei, a maioria branca, educada e de classe média alta, sabiam das deficiências do sistema de saúde e se sentiam relutantes.

Neste país, e isto é verdade neste momento, há muitos negros com relutância em aceitar a vacina por causa do histórico de abusos e lapsos do establishment médico com a comunidade afro-americana.

Você argumenta que algumas pessoas ainda resistem a submeter seu corpo a intervenções científicas, em favor de tudo o que seja natural. De onde vem esse receio?

Para algumas pessoas em ambientes urbanos, “natural” vira sinônimo de benigno. São associações soltas, mas ligamos medicina a química, drogas. Nos Estados Unidos, temos um problema enorme de vício em analgésicos, que foi uma intervenção médica que deu errado.

Mas o que é interessante sobre vacinas é que elas são naturais. Há uma certa elegância no jeito como uma vacina funciona, porque aproveita as próprias proteções do seu corpo para prevenir doenças.

Mas isso acaba enredado no mesmo debate, não? Porque parte da postura contra a vacina vem de pais que querem proteger seus filhos de intervenções externas.

Com certeza. Acho que é difícil para muitos de nós entender a medicina preventiva: é melhor fazer algo que parece invasivo, enfiar uma agulha no corpo de uma criança, porque provavelmente vai prevenir coisas muito mais invasivas no futuro.

É difícil enxergar essas coisas adiante. A medicina preventiva brinca com a nossa sensação sobre o que pode ou não ocorrer no futuro. Se não vemos crianças com sarampo ao nosso redor, não acreditamos que seja algo possível.

Em “Imunidade”, a sra. afirma que o debate sobre a vacinação é com frequência apresentado como um conflito entre mães e médicos. E que, na verdade, devemos aceitar que somos todos racionalistas irracionais. O lado irracional das pessoas deve ser tão respeitado quanto o racional?

Um imunologista que admiro, Paul Offit, diz que você pode respeitar o medo, mas não significa que precisa respeitar que alguém tome suas decisões a partir desse medo.

Muitos medos eu chamaria de racionais. Se você é negro nos Estados Unidos e seus olhos estão abertos para o que aconteceu no passado, é bem racional ter medo do que o governo pode fazer com você.

Mas acho que é razoável esperar que as pessoas decidam não com base no medo, mas com base em informação.

Em outro momento, a sra. escreve que o debate sobre vacinas é relacionado à integridade da ciência, mas pode ser enquadrado como uma discussão sobre poder. Pode elaborar essa ideia?

Há algumas conversas diferentes sobre isso acontecendo. Uma delas é sobre o poder que médicos e especialistas têm nas mãos, e as pessoas se sentindo intimidadas e desconfiadas deles.

É um jogo pelo controle de quem pode decidir sobre o bem-estar de uma criança. Em algumas instâncias, as mães, especificamente, dizem “eu quero ter mais voz nisso”, “quero que essas decisões sejam guiadas pelas minhas prioridades”. Esse é um tipo de relação de poder.

Mas há uma longa história de resistência a vacinas que se relaciona ao poder do Estado. Remete a um movimento robusto antivacina na Inglaterra em meados do século 19 —eram cidadãos tentando negociar quanto poder o Estado teria e de que maneira ele poderia exercê-lo e punir os cidadãos que não seguissem suas recomendações de saúde.

Era um período de negociações quentes, e ainda não terminamos essa conversa. Pelo menos nos Estados Unidos, as pessoas ainda falam de vacinação em termos de liberdade e direitos individuais, de resistência à interferência do governo.

Mas uma coisa que essa pandemia ilustrou é que, sem vacinação, seus direitos provavelmente vão ser ainda mais constritos. Eu nunca me senti tão constrita na vida, não posso ir aos lugares que quero, mandar meu filho para a escola. Essas restrições não aconteceriam se estivéssemos vacinados.

A realidade é que você aumenta a sua própria liberdade com a vacinação. As outras maneiras de controle da doença são muito mais draconianas.

Quando fala sobre o aspecto antiestablishment do movimento antivacina, a sra. menciona que havia uma aproximação com o movimento Occupy, porque ambos tinham nuances de anticapitalismo. Os antivacinas têm alguma inclinação política específica?

Os dados que vi, que são dos anos 1980 ou 1990, mostram que há reservas contra vacinas em pessoas de todo o espectro político, com todo tipo de filiação política e religiosa, de idade, de gênero.

Uma coisa interessante é que há pessoas na direita que não concordam com nada da esquerda, exceto que ambos suspeitam da vacina. A extrema direita e a extrema esquerda são dois grupos que tendem a desconfiar da vacinação.

É uma atitude ligada à sua relação geral com o governo. Os extremos dividem sempre uma insatisfação com o governo em si.

Um estudo recente sugeriu que uma das coisas que vários grupos que não se vacinam têm em comum é a insularidade —estar separado da sociedade, por alguma razão, como fazem os judeus hassídicos e os amish.

A sra. acha que, com a mudança de governo de Donald Trump para Joe Biden, o apelo para se vacinar vai aumentar ou diminuir? Por um lado, Biden tem uma visão de política de saúde mais ampla, mas a extrema direita tinha uma afinidade maior com Trump.

Pode ir para qualquer um dos lados, mas meu instinto é que, se há uma sensação maior de estabilidade, de que o governo é confiável, isso vai aumentar os níveis de imunização e a confiança nas vacinas —não importa sua filiação política.

Eu me baseio nessas experiências do Paquistão e da Nigéria, países em que o governo estava em desordem. Era assim que nos sentíamos sob Trump. Era um caos. Talvez mesmo os apoiadores dele sentissem que as coisas não funcionavam de forma excelente.

E ainda não temos isso (risos). Mas sentimos, em algum nível, o retorno a uma sensação de competência básica. Eu me sinto mais segura tomando uma vacina supervisionada por um governo que não está enrolado em escândalos, que não é liderado por um incompetente.

A porcentagem de brasileiros que afirmam não querer se vacinar contra a Covid-19 ainda é alta. A última pesquisa Datafolha mostra que 17% das pessoas têm essa posição. Com base nos seus estudos, qual é a melhor estratégia para convencer essas pessoas a se vacinarem?

Uma estratégia é providenciar acesso realmente bom a informação de qualidade, em vez de bater nas costas das pessoas e dizer “confie em mim, vai dar certo”. É preciso comunicar com clareza a diferença entre informação confiável e não confiável.

Nas minhas conversas com pessoas resistentes à vacinação, vi uma receptividade à ideia de que elas podem colocar os outros em perigo por sua decisão. Não importa a razão de suas resistências, eles realmente não querem ser uma ameaça para os outros.

O primeiro passo é comunicar que não é uma decisão individual. Você vai expor as outras pessoas, e algumas delas não poderão tomar essa decisão —porque têm doenças graves ou não têm idade suficiente para a vacina. Quando as pessoas pensam por esse ângulo, mudam de ideia com frequência.

Há benefícios claros para você mesmo em se vacinar, mas uma consequência de não fazer isso é colocar a vida dos outros em perigo. Você está insistindo em continuar perigoso.

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