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Alexandre Caldini

'Vida Após a Morte' não impressiona brasileiro e é espiritismo para inglês ver

Produção da Netflix escamoteia conceitos espíritas, mas tem mérito de levar debate até os povos do primeiro mundo

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Alexandre Caldini

Autor do livro “A Morte na Visão do Espiritismo”

Estreou em janeiro na Netflix uma série intitulada “Vida Após a Morte”. Baseada no best-seller "Surviving Death", da jornalista Leslie Kean, a série aborda na sua primeira temporada temas como mediunidade, experiência de quase morte, reencarnação, materialização e psicografia.

A série, bem produzida, não dogmática e que busca aliar ciência e espiritualidade, é bem interessante e prende a atenção. Conta vários casos de pessoas religiosas e não reencarnacionistas ou mesmo céticas, que se viram forçadas a reconhecer a continuidade da vida após a morte do corpo, depois de intensas experiências pessoais, com inequívocas evidências.

É o caso de um garotinho americano filho de pais absolutamente céticos, que aos seis anos demonstra conhecer surpreendentes detalhes técnicos de aviões de guerra. Ele diz que noutra vida se chamava James 3º e descreve como morreu quando era piloto militar e seu avião fora abatido por japoneses na Segunda Guerra Mundial.

O garoto dá o nome do navio de onde seu avião partira, o mesmo de seu melhor amigo na tropa e do local —Iwo Jima— onde seu avião foi derrubado. Tudo posteriormente confirmado por documentos obtidos em investigações de cientistas estudiosos da reencarnação.

O documentário igualmente apresenta o caso de um ator coadjuvante de Hollywood morto na década de 1960 e agora reencarnado. Em sua nova encarnação, dá detalhes desconhecidos sobre a vida do artista –como a existência de uma irmã— que nem a filha ou a tia dele sabiam, mas que foram confirmados após uma extensa pesquisa. Os casos são referendados por cientistas de prestigiosas universidades como a de Cambridge, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts, e outros PhDs.

Mas o documentário também mostra uma escola de formação de médiuns na Holanda que parece meio suspeita ou, no mínimo, muito comercial. A sofisticada escola, em um belo e enorme prédio, no meio de um lindo bosque, oferece workshop pagos para a formação de médiuns.

A ideia é que o aluno saia do rápido curso pronto para se comunicar com seus parentes mortos. Por comparação, no espiritismo no Brasil, um médium leva no mínimo cinco anos de estudo e prática para ser formado, e alguns, mesmo depois desse tempo, nunca conseguirão dar comunicação alguma. O curso no Brasil, que é sempre gratuito, tem como objetivo que o médium ajude outros, e não que apenas satisfaça sua curiosidade em descompromissados bate-papos com seus parentes mortos.

Talvez buscando isenção, a série também mostra algumas saias justas mediúnicas. Um dos médiuns instrutores da escola holandesa, em transe, tenta —sem sucesso— adivinhar características de um consulente indiano. Sugere algo e o indiano, sem graça, nega. E nega novamente e novamente.

Depois de várias tentativas infrutíferas, o médium acaba desistindo. A médium chefe dessa mesma escola, em determinado trecho do documentário, é trazida da Holanda para os Estados Unidos para fazer uma “leitura mediúnica”. Em transe, apresenta surpreendentes dados pessoais de um dos consulentes. Mais tarde, se verifica que tudo o que ela disse estava no Facebook do rapaz.

Nessa mesma escola, os médiuns professores entram numa sala (que lembra bastante a nave de uma igreja) apenas depois que todos os alunos já estão sentados. São recebidos com entusiasmados aplausos, numa postura que beira um forçado incentivo à idolatria.

No Brasil, uma das regras mais repisadas para todos os médiuns é a importância de manterem a modéstia, a sobriedade, a simplicidade e o espírito de servir. Médium aqui é —ou deveria ser— apenas um voluntário intermediário da comunicação e não um superstar.

A cena deles sendo aplaudidos ao entrar e sair do salão da escola de médiuns lembra João de Deus, igualmente ovacionado e agora desmascarado.

Um ponto bastante diferente da mediunidade brasileira com a estrangeira é que aqui —pelo menos no espiritismo— médiuns não cobram nada para realizar uma consulta mediúnica. Nos Estados Unidos, médiuns cobram e, como nos lembra um barman que contrata os serviços de alguns médiuns para saber de seu pai morto, esses médiuns ganham muito dinheiro.

O que a série apresenta não é nada de novo ou surpreendente para nós, brasileiros, que vivemos num país onde existem dezenas de milhares de centros espíritas, milhares de terreiros de umbanda e de candomblé e onde os postes têm cartazes garantindo uma mandinga para trazer a pessoa amada. Quem teve Chico Xavier, Zé Arigó e Mãe Menininha não se impressiona com médium de workshop.

Mas, se não há grande novidade para quem foi criado em meio a passes e psicografias, a série tem o mérito de levar ao mundo um olhar espiritualizado da morte. Aborda conceitos absolutamente espíritas como passe, psicografia, psicofonia, vidência, materialização, reencarnação e até ectoplasma, embora não mencione em nenhum momento o pioneiro e organizador do espiritismo, o intelectual francês Allan Kardec.

A série tampouco menciona a palavra "espiritismo" ou o país onde os fenômenos espíritas são mais corriqueiros e fazem parte da cultura popular, o Brasil. Um esquecimento que lembra aquelas teses de doutorado que copiam trechos inteiros, mas se esquecem de citar a fonte.

Vida após a morte

  • Quando Disponível
  • Onde Netflix
  • Classificação 18 anos
  • Produção Estados Unidos, 2021
  • Direção Ricki Stern e Jesse Sweet
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