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'A Sombra de Stalin' retrata crime soviético com silêncio refinado

Coragem e corrupção no jornalismo são pano de fundo do longa-metragem dirigido por Agnieszka Holland

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A SOMBRA DE STALIN

Ele tinha 27 anos, havia entrevistado Hitler e queria agora entrevistar Stálin. “Mr. Jones” –título original traduzido como “A Sombra de Stalin” na versão brasileira– é Gareth Jones, um aluno brilhante que se forma em russo na Universidade de Cambridge e flerta com o jornalismo freelancer enquanto assessora o ex-premiê britânico David Lloyd George, no começo dos anos 1930.

As notícias de prosperidade na União Soviética o deixam intrigado. Faz as contas, vê que elas não fecham e assume a missão de descobrir de onde vem o dinheiro do ditador comunista.

A trajetória para descobrir o segredo envolve o assassinato de um amigo, noites de orgia em Moscou e uma viagem clandestina à Ucrânia, onde vive dias de tensão e desespero até sua prisão e expulsão para o Reino Unido. Chantageado para calar sobre o que viu, ele não cede e é vítima de uma campanha de difamação.

Cartaz com dizeres em ucraniano mostram personagem masculino, de óculos e segurando uma câmera, e personagem feminina abraçando um caderno
Os atores britânicos James Norton e Vanessa Kirby em cartaz para o lançamento na Ucrânia do filme "A Sombra de Stalin" ("Mr. Jones", no título original), da diretora polonesa Agnieszka Holland - Reprodução

Aos fatos da vida real a roteirista Andrea Chalupa acrescentou cenas fictícias como um encontro com o escritor George Orwell, autor de uma das mais conhecidas críticas ao stalinismo, o romance "A Revolução dos Bichos" —no qual o dono da fazenda também se chama Mr. Jones.

A biografia do repórter já foi tema de documentários como “Hitler, Stalin & Mr. Jones”, levado ao ar em 2012 pela BBC, mas o herói em questão é desconhecido o suficiente para que o espectador possa aproveitar o suspense bem construído. Por isso, não convém dar detalhes do enredo. Mais importante é dizer que o filme deve interessar quem gosta de jornalismo, política, história e cultura, e que as reflexões que levanta permanecem atuais quase um século depois dos fatos que relata.

“A Sombra de Stalin” não foi um projeto aceito de cara pela diretora polonesa Agnieszka Holland, três vezes indicada ao Oscar por filmes sobre o Holocausto —“Colheita Amarga”, de 1985, “Filhos da Guerra”, de 1990, e “Na Escuridão”, de 2011. “Contar essas histórias traz sempre dor e muita responsabilidade”, disse ela em debate sobre o filme, na internet.

Holland mudou de ideia porque se deu conta de que “os crimes nazistas foram reconhecidos como crimes contra a humanidade, mas os de Stálin acabaram esquecidos e perdoados”. Numa Europa pós-Primeira Guerra, dizimada pela gripe espanhola e pela grande recessão, a União Soviética era vista como uma alternativa viável de sociedade, o que fez calar muitos intelectuais, afirma.

A diretora se convenceu de que a narrativa audiovisual seria a ferramenta mais poderosa contra uma situação “injusta e perigosa”. “Injusta para as vítimas que estão até hoje anônimas e sem voz”, diz Holland. De uma reconstrução de época cuidadosa e refinada, ela transita para um cenário naturalmente sem cor, onde o silêncio se impõe. No caminho, faz referências a Dziga Vertov, uma das estrelas da vanguarda cinematográfica soviética da época.

"Deixar de contar essa história seria perigoso porque, quando não aprendemos a lição, os erros podem se repetir.” Mas os erros que estão na mira da roteirista e da diretora não são os do ditador soviético, e, sim, os de Walter Duranty, então correspondente do jornal The New York Times e “rei dos expatriados” em Moscou.

Se o mocinho representado pelo britânico James Norton é o protagonista, foi o perfil do vilão —“excêntrico, sombrio, inebriado pelo poder e antiético”— que despertou Chalupa a escrever o roteiro. O ator americano Peter Sarsgaard constrói um Duranty suficientemente cínico, sem ser caricato.

A dupla masculina torna supérflua a personagem feminina Ada Brooks, interpretada por Vanessa Kirby, a linda atriz britânica que fez a princesa Margaret na série "The Crown"e recém-indicada ao Globo de Ouro pela atuação em "Pieces of a Woman". Sem papel relevante na trama, ela parece estar ali como ornamento. Em tempos de MeToo, talvez bastasse ter duas mulheres no comando da história, fora de cena.

As legendas para o português contêm imprecisões que seriam detalhes, a não ser por dois momentos mais significativos. Num deles, "agenda" foi traduzida literalmente por "plano", perdendo o caráter de "interesse oculto" que Jones combatia no diálogo. No outro, quando o galês acusa Duranty de "mentir por Stálin", a legenda diz "mentir para Stálin".

“A Sombra de Stalin” concorreu em 2019 ao Urso de Ouro do Festival de Berlim e ganhou o prêmio Golden Lions do Festival de Gdynia. O filme mais recente de Holland, "Charlatão", foi um dos destaques na Mostra de Cinema do ano passado.

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