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'A Visão das Plantas' imagina capitão de navio negreiro impune e rodeado de flores

Livro de Djaimilia Pereira de Almeida sublima com beleza de jardim a violência de uma figura que não paga por seus erros

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São Paulo

Um homem retorna à casa de sua infância após anos ausente e, ali, se dedica a construir um belo jardim, cheio de plantas que dão frutas e flores. Celestino não é, porém, nenhum Tistu, o menino doce que faz plantas crescerem onde quiser no clássico infantil “O Menino do Dedo Verde”, de Maurice Druon.

Em “A Visão das Plantas”, novo livro de Djaimilia Pereira de Almeida, o jardineiro é um capitão de navio negreiro aposentado, responsável por decapitações e por mortes de negros escravizados, soterrados sob sacos de cal no porão de um barco.

mulher negra de cabelos longos e usando óculos olhando para baixo
A escritora Djaimilia Pereira de Almeida - Humberto Brito/Divulgação

Celestino apareceu há 20 anos à escritora portuguesa nascida em Angola, num breve trecho de “Os Pescadores”, livro de 1923 do também português Raul Brandão. O mesmo trecho serve de epígrafe ao romance agora, segundo lugar do prêmio Oceanos do ano passado. Em 2019, Almeida havia levado o primeiro lugar com “Luanda, Lisboa, Paraíso”.

“As escassas linhas de Brandão sobre essa figura odiosa me fascinaram e assombraram”, diz Almeida, por conterem um enigma, uma “possibilidade filosófica”, segundo ela, que resolveu aprofundar –“a de uma pessoa nunca encontrar castigo para os atos que comete, nunca se arrepender e morrer, apesar de tudo, de consciência tranquila”.

colagem
Capa de 'A Visão das Plantas', livro que Djaimilia Pereira de Almeida lança pela Todavia - Reprodução

O assunto é dos que mais interessam à autora. “Talvez a questão da justiça, como equidade, da justiça não apenas como anseio, projeto político, mas também como virtude cardeal, seja das que mais me importam há muitos anos”, diz.

Almeida conta que um dos autores que a guiam nessa investigação é o filósofo britânico Peter Geach, que questiona, a partir da parábola bíblica dos trabalhadores da vinha —que está no evangelho de Mateus e versa sobre justiça— se a todos é dada uma chance de salvação.

“Geach acrescenta que, por vezes, essa chance nos é dada cedo na vida e a desperdiçamos, continuando vivos, à vontade no mundo, mas ‘mortos aos olhos de Deus’”, diz ela. “Esta afirmação, que sempre me perturbou, acompanhou toda a escrita de ‘A Visão das Plantas, sem que eu saiba até agora lhe responder, no que diz respeito a Celestino. E, no entanto, é pensar e fazer perguntas o que me vai movendo, sobretudo quando as deixo em aberto.”

Não está claro, no romance, se o ex-capitão sente algum tipo de arrependimento pelas atrocidades que cometeu. Ele morre rodeado por suas plantas, companhia que, segundo a autora, “não pode julgá-lo nem apiedar-se dele e, nessa medida, morre sem público para o que seria a sua redenção, sem se confrontar nem com as suas vítimas nem com os seus juízes”.

Mas além das plantas, o breve romance, de menos de cem páginas, está permeado de referências ao clima, como chuvas e ventos, e a animais, como gatos e morcegos. “A natureza costuma interessar-me enquanto espelho do que se passa no interior das personagens, na medida em que reflete sua interioridade”, diz a escritora.

É na simbiose entre Celestino e a sua companhia não humana, diz ela, que reside “a insinuação de sua inumanidade, da sua índole bestial, apesar de toda a sua humaníssima delicadeza e do seu zelo pelo seu jardim”.

Figura misteriosa, com chapéu, casacos, tapa-olho, tatuagens e um passado que a vizinhança suspeita violento, Celestino é visto como um monstro. A beleza de suas plantas, contudo, desperta interesse. “Se ali vivia o diabo, era bom jardineiro”, diz o livro, a certa altura.

Há no jardim cravos, sardinheiras —semelhantes a gerânios—, árvores de ameixas, gladíolos. Para os leitores menos versados em plantas, algumas pesquisas por imagens das flores citadas podem ajudar. O conhecimento das plantas vem do período em que a escritora foi voluntária no Jardim Botânico de Lisboa, quando ainda era estudante.

Sem nunca ter tido um contato próximo com a natureza, ela diz que sentia falta de coisas simples –“mexer na terra, perder o medo dos insetos, aprender a tratar as árvores e as flores pelo nome”. O período a marcou profundamente e acabou sendo uma revelação, diz Almeida.

Com a ajuda de uma botânica, a escritora executava tarefas como catalogar sementes, plantar e retirar ervas daninhas. “Fui aprendendo alguma coisa nessas manhãs, com essa mulher extraordinária, que sabia tudo sobre o tema e era generosa no que me ensinava”, diz.

“Ao escrever ‘A Visão das Plantas’, socorri-me de muitos dos seus ensinamentos não só em termos de nomenclatura, mas também outros, próximos de uma filosofia, o de que as plantas não nos julgam e que lhes pertence um gênero de sabedoria e vontade de dominação do mundo insondáveis.”

A Visão das Plantas

  • Preço R$ 49,90 (88 págs.); R$ 29,90 ebook
  • Autoria Djaimilia Pereira de Almeida
  • Editora Todavia
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