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Amanda Gorman, a poeta de Biden, acende debates sobre lugar de fala entre tradutores

Meio literário se divide diante de pressão para contratar negros para verter obra de jovem negra

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The New York Times

Hadija Haruna-Oelker, uma jornalista negra, acaba de concluir a tradução para o alemão de “The Hill We Climb”, a colina que escalamos, poema de Amanda Gorman sobre “uma esbelta garota negra” que, para muita gente, foi o ponto alto da posse do presidente Joe Biden.

Assim como Kübra Gümüsay, uma escritora alemã de ascendência turca.

Assim como Uda Strätling, tradutora, que é branca.

A tradução literária costuma ser uma empreitada solitária, mas a editora alemã Hoffmann und Campe recorreu a uma equipe de tradutores para garantir que a tradução do poema de Gorman –que tem apenas 710 palavras– não fosse fiel apenas à voz da poeta.

O trio também foi instruído a tornar claro o significado político e social do texto e a evitar o que quer que pudesse excluir as pessoas não brancas, deficientes, mulheres e outros grupos marginalizados. “Foi uma aposta”, diz Strätling, sobre a abordagem colaborativa.

Por quase duas semanas, a equipe debateu a seleção de termos, enviando emails ocasionais a Gorman em busca de esclarecimentos. Mas enquanto elas trabalhavam, a discussão fervilhava na Europa sobre quem tem o direito de traduzir o trabalho da escritora. “Começou todo um debate”, diz Gümüsay com um suspiro.

A questão surgiu em fevereiro, quando a editora Meulenhoff, na Holanda, anunciou que tinha pedido a Marieke Lucas Rijneveld, escritora cujo romance de estreia conquistou o prêmio Booker International no ano passado, que traduzisse o poema de Gorman para o holandês.

Rijneveld era a “candidata ideal”, segundo informou a editora em comunicado. Mas muitos discordaram disso nas redes sociais, perguntando por que uma escritora branca havia sido escolhida quando a leitura do poema por Gorman na posse foi um momento tão significativo para a comunidade negra.

Três dias mais tarde, Rijneveld abandonou o projeto. (Ela não quis conceder uma entrevista para esta reportagem.)

Em março, o debate se reacendeu depois que Victor Obiols, outro tradutor branco, foi dispensado pela editora espanhola Universe. Obiols disse que foi informado de que seu perfil “não era adequado para o projeto”. Uma porta-voz da Universe recusou comentários.

Figuras literárias e colunistas de jornais de toda a Europa estão discutindo há semanas sobre se essas decisões significam transformar o poema de Gorman na mais recente causa de conflagração nos debates sobre política de identidade que varrem o continente. A discussão pôs em destaque o mundo em geral obscuro da tradução literária e sua falta de diversidade racial –em tempo, os versos de Gorman no Brasil serão vertidos ao português pela poeta Stephanie Borges, que é negra.

“Não me recordo de qualquer controvérsia sobre tradução que tenha se espalhado pelo mundo dessa maneira”, diz Aaron Robertson, que é negro e traduz do italiano para o inglês, em uma entrevista por telefone. “O momento parece representar um marco”, acrescenta.

Na semana passada, a Associação de Tradutores Literários dos Estados Unidos decidiu ingressar na disputa. “A questão de se a identidade deve ser um fator decisivo na escolha de um tradutor é um enquadramento falso das questões em disputa”, afirmou a organização, num comunicado veiculado no seu site oficial.

O problema real que existe sob a controvérsia é “a escassez de tradutores negros”, segundo a organização. No ano passado, a associação conduziu uma pesquisa de diversidade. Só 2% dos 362 tradutores que a responderam eram negros, informou uma porta-voz da associação por email.

Em entrevista por vídeo, as integrantes da equipe alemã de tradução afirmam que, na opinião delas, o debate gira em torno da questão errada. “As pessoas fazem perguntas como ‘a cor da pele dá alguém o direito de traduzir?’”, diz Haruna-Oelker. “E não é uma questão de cor da pele. É a qualidade, a técnica que a pessoa tem, e sua perspectiva.”

Ela acrescenta que cada uma das integrantes da equipe alemã contribuiu para o grupo com elementos diferentes. A equipe passou muito tempo discutindo como traduzir a palavra “skinny”, magrinha, sem conjurar imagens de uma mulher magra demais, conta Gümüsay, e debateu ainda como transportar a linguagem inclusiva em termos de gêneros usada no poema para o alemão, em que muitos objetos –e todas as pessoas– são masculinos ou femininos.

“Havia um movimento constante entre a política e a composição”, diz Strätling. “A sensação para mim era a de uma dança”, afirma Gümüsay sobre o processo. Haruna-Oelker acrescentou que a equipe tentou com afinco encontrar palavras “que não ferissem qualquer pessoa”.

Mas enquanto as tradutoras alemãs pareciam felizes em se envolver em questões de política de identidade, outros profissionais expressaram preocupação sobre as dispensas de tradutores e suas implicações. Nuria Barrios, que é branca e traduziu o poema para o espanhol, escreveu no jornal El País que a saída de Rijneveld do projeto era “uma catástrofe”.

“É a vitória da política de identidade sobre a liberdade criativa”, escreveu, adicionando que “remover a imaginação da tradução é submeter a disciplina a uma lobotomia”.

Alguns acadêmicos e tradutores negros também expressaram preocupação. “Existe uma ideia tácita de que deveríamos nos preocupar em encontrar uma identidade de tradutor ‘apropriada’, no caso específico da negritude”, disse John McWhorter, professor de inglês e de literatura comparativa na Universidade Columbia, por email.

Mas outras diferenças entre escritores e seus tradutores –como o nível de renda ou as opiniões políticas– não despertam uma preocupação equivalente, acrescentou McWhorter. “Nosso significado de diversidade é mais estreito do que a palavra implica, gira apenas em torno da cor da pele”, ele diz.

Formular a discussão em termos de uma identidade "apropriada” é “realmente ridículo”, afirma Janice Deul, jornalista e ativista negra holandesa que, em 25 de fevereiro, escreveu um artigo de opinião para o jornal De Volkskrant, em seu país, em que definia a indicação de Rijneveld para o trabalho como “incompreensível”. No dia seguinte, Rijneveld abandonou o projeto.

“A questão não é quem é capaz de traduzir, e sim quem tem a oportunidade de traduzir”, diz Deul. No seu artigo, ela fez uma lista de nomes de dez artistas negros holandeses que trabalham com poesia falada e poderiam fazer o trabalho, adicionando que nenhum deles tinha sido procurado.

A única opinião que não foi ouvida quanto a tudo isso é, claro, a de Gorman. A editora Viking vai lançar “The Hill We Climb” nos Estados Unidos nesta terça-feira (30). A Apple TV Plus disponibilizou no seu streaming uma entrevista da poeta a Oprah Winfrey, mas ela não comentou durante a conversa sobre o debate gerado por seu trabalho. Um representante de Gorman não respondeu a pedidos de comentário.

Gorman, ou seus agentes, a Writers House, que a representam quanto aos direitos de tradução, parecem ter influência sobre as pessoas selecionadas para a tradução. Aylin LaMorey Salzmann, editora da versão alemã de “The Hill We Climb”, disse que o detentor dos direitos de tradução tinha poder de aprovação sobre as pessoas escolhidas e que o perfil das pessoas precisava ser semelhante ao de Gorman.

Irene Christopoulou, editora na Psichogios, empresa que adquiriu o direito de publicar o poema na Grécia, ainda está à espera de aprovação quanto à tradutora. A escolhida foi “uma poeta emergente” branca, disse Christopoulou em um email. “Devido ao perfil racial da população grega, não existem tradutores ou poetas não brancos entre os quais escolher”, diz.

Um porta-voz da Tammi, editora do poema na Finlândia, afirmou em email que “as negociações continuam, com os agentes e com Amanda Gorman”.

Diversas editoras europeias indicaram músicos negros como tradutores. O rapper Timbuktu traduziu o poema para o sueco, e Marie-Pierra Kakoma, cantora mais conhecida pelo pseudônimo Lous and the Yakuza, traduziu o poema para o francês; a editora Fayard publicará o trabalho em maio.

“Achei que o talento literário de Lous, seu senso de ritmo, sua conexão com a poesia falada, seriam vantagens imensas”, afirma Sophie de Closets, publisher da Fayard, num email em que explica sua escolha da estrela pop.

Questões de identidade “com certeza devem ser consideradas” na contratação de tradutores, continuou De Closets, mas elas vão além da raça. “Cabe à editora a responsabilidade de buscar a combinação ideal entre um dado trabalho e a pessoa que o traduzirá.”

Haruna-Oelker, uma das tradutoras para o alemão, diz que um resultado decepcionante do debate na Europa era que isso havia desviado a atenção quanto ao significado do poema de Gorman. “The Hill We Climb” fala sobre unir as pessoas, afirma a tradutora, exatamente da maneira que a editora alemã fez ao montar uma equipe.

“Tentamos um belo experimento aqui, e é nessa direção que o futuro seguirá”, diz Gümüsay, outra tradutora para o alemão. “O futuro está em tentar buscar novas formas de colaboração, tentar unir mais vozes, mais olhares, mais perspectivas, a fim de criar algo novo.”

Tradução de Paulo Migliacci

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